segunda-feira, 10 de agosto de 2009

As Cartas Úmidas


( Conto do projeto em parceria com Grazzi Yatnã, de completude. Pode ser lido separado, sem perdas, mas recomendo que acompanhem em http://grazziencontro.blogspot.com/, para ganhos)
º
Para Sophie Calle.

Já esboçamos diversas cartas de despedida, sempre amassadas, a bola jogada no lixo do outro, com a intenção de ser lida e como a dizer, "veja que abandono o abandono, mas quase".
Não sei se foi você ou eu, ambos tomando vinho, ou eu tomando vinho e você na ioga, ou você tomando vinho e eu olhando o teto e seus rumores audíveis, o essencial é que tivemos a idéia, acho que porque ambos estudávamos - sob ângulos diferentes, ambos amadores - a carta de Pero Vaz de Caminha.
Era a nossa vez de enviar a carta sobre essa ilha que somos nós. Dar sinal de vida em funcionamento, exato, as engrenagens e os súbitos improvisos. Não sei quanto tempo levamos para, cada um a sua vez, escrever as regras, leis, hecatombes elegantes do nosso relacionamento. Claro que após a escrita de um e de outro, vinha a irritação. Mas como pode viver um homem sem irritação ? Seria o mesmo que pensar e crer que as meias protegem realmente os pés contra o sapato e as caminhadas por aí.
Alguns trechos despertavam o que eu poderia chamar de "interesse sexual",grosso modo. Estando o outro disposto, ótimo, não estando, vide a carta. O objetivo era claro para nós desde o vinho, a ioga e o teto fantástico: mandar para nossos conhecidos, do prédio até a torção do mundo, pais, irmãos, figurantes, com o pagamento do reenvio dentro do envelope, pedindo que anonimamente, após ler o conteúdo, nos escrevessem seus julgamentos, de que ordem fossem. Afinal, perdemos a chave, mas sempre há o vão debaixo da porta.
E assim.
Mesmo tendo eu e você alguma ligação com o que se chama "arte", o "Projeto Carta" foi um sucesso. Começamos a receber os retornos após três dias de envio. Eram letras de forma, letras coladas de revista, impressas por computador, e o mais magnífico é que enviamos 38 cartas e recebemos 153 respostas. Você se empolgou a ponto de comprar rosas e se ajoelhar com os cotovelos nos meus, os joelhos.
Tal exacerbação com os interlocutores tinha como ponto em comum a náusea que despertávamos, o nojo, a inveja, até mesmo o pecado foi citado. Nem um único elogio. Certamente era o que esperávamos, já no vinho, na ioga, no teto de sombras mágicas. Não que em nós algo fosse condenável, sim, muito o era, mas o desejo de maledicência dos nossos próximos, os seres humanos, quando amparados pelo anonimato, era radical. Nenhuma tese filosófica para isso, apenas a constatação que entre nós dois, eu e você, a vilania doméstica servia antes para nos manter sob o mesmo teto, ioga e vinho do que o "amorzinho gostoso"dos vizinhos com estetoscópios curiosos. Nossas sessões de espancamento divididas em dias pares e ímpares, o arregalar um de seus olhos no momento do gozo, para esporrar na retina, a sua sopa de fezes e macarrão enroladinho, o poker valendo unha, enfim, nossas coisinhas caseiras tinham...ressonância...tanto em nós, como em outros, diretos ou infectados. Se como dizem hoje em dia, o corpo não é apenas individual, mas "político", alguma coisa estávamos criando no nível social. Ultraviolência? Bem, na verdade, não que isso importe. Muito mais relevante é o narcisismo insofismável que nos foi servido, o gasto de tempo e trabalho alheios, a auto admiração em viés, esse nosso alimento predileto.
Pero Vaz de Caminha e sua ilhota nada significavam perto da grandiosidade selvagem de apenas dois seres e alguns fetos perdidos.
Todas as cartas foram lidas por nós dois, cada um munido de um marca texto de cores diferentes, sendo que ao final, tudo estava grifado, nem as vírgulas traçadas com ódio escapavam à delicadeza sinfônica da infâmia.
º
"Eu, como macho, nunca deixaria uma mulher fazer isso que ela faz com seu ânus"
º
"Você, mocinha, é uma grande moralista, não pense que não, se acha melhor, se acha mais que eu, mas eu tenho uma família e isso me alegra, mesmo que você esnobe"
º
"Será que vocês dois não pensam em arrumar empregos decentes, estáveis, ao invés de se afundarem na vida de vício e golpes ?"
º
"E esse rapazote, muito do atrevido, tenho certeza que é uma pessoa triste, e não quer sair disso! Leia Augusto Cury"
º
"Mulher, pára com essa doideira, com esse otário, vem prum homem que vai te fazer gozar e muito, ver estrelas ( viu, também sou poeta !)"
º
"Dois macacos ! Dois vermes ! Nem isso ! E ainda existem darwinianos !"
º
"O dia do Juízo vai chegar e o vermelho sangue manchará vossas almas ignatas!"
º
"Cara, se eu te encontro na rua ! Tá certo que ela é doente, mas em mulher não se bate nem com uma rosa"
º
"Grande coisa o que vocês fazem. Eu tenho 5 piercings, sendo um vaginal, 19 tatuagens, e gosto de ser elevada por ganchos ! Não são de nada. Bú !"
º
"Vocês se beijam ou se vomitam na boca?"
º
º
Agora sabem de nós. Minha esquizofrenia me diz que mais gente saberá. Você, com a cabeça no meu ombro, o cigarro entre os dedos, diz que meus delírios nunca erram.
Nos fazemos cafunés.
º

12 comentários:

CrisF disse...

Não sei o que pensar sobre esse texto. Apenas que gostei muito de um jeito estranho.
Beijo.

(sheyladecastilhoº disse...

cartas úmidas...tesão solitário no banheiro, por falta e excesso de intimidade ...o título remeteu minha imaginação à cartas escritas num papel higiênico e os dois se limpando com as tristezas úmidas de sempre...

belo texto, pauloº, escatológico, visceral e très romantique!!

beijo

Anônimo disse...

nossa, me arrepiei tooooda com esse conto texto (?)

puta merda. eu adoro quando não gostam das coisas ke faço também. a´aá a á dá tesão de fazer mais.
beijo.
clàu

T.A. disse...

nesse mundo estranho
quando se perdem
se encontram os ganhos


Paulera neles!!!!!! ou te castro!

Anônimo disse...

fiquei pensando agora que entre Sophie e Grégoire tem uma coisa que senti no seu texto. é como se eles fizessem essas dualidade. a sophie parece tremendamente mais interessante que o grégoire. mas é ele quem dispara nela o processo que cresce e o envolve, pós-final. ou assim conta a lenda. em seu texto tem essa coisa. uma gente legal, uma gente infame e também uma gente macarrão com fezes(festas) e as cartas lidas, e aquela exposição (narcisismo insofismável) e a leitura com marca-texto, tão 'perversa' (ah, mas como é isso, pode ser de tantas formas, mas ou menos 'honestas', etc).
gostei do texto. parece recontar uma história. e parece também continuar esta história, como se: ao recontar algo sobre instabilidades e cartas, você escrevesse sua carta para sophie, dentro do projeto dela das cartas. agora, já, trabalho.
bj.

bel

Mão Veada disse...

... sobretudo nas sombras projetadas no teto ... agora e sempre ... ressonância ... e nem as vírgulas traçadas com ódio escapavam à delicadeza sinfônica da infâmia: “sólo recuerdo tu voz, pidiendo que acercara aquel metal, sólo quedamos tu y yo en la inmensidad”
isenção o cacete!

Grazzi Yatña disse...

O que mais vai se aproximar - pela via da perversão gozosa - da nobreza, em
termos estéticos, é a anarquia. Não a política.Mas para isso há de se formar um pacto, e há de se ter muita seriedade na superação.
Por isso cumprir o que se promete é para quem se garante, sem prometer nada.
Beijos.

b disse...

A mim não choca um casal doente.
Que se mostra doente - porque todo casal é doente.
Conviver é coisa doentia.
Natural é ser naturalmente só.
E trocar alguma coisa quando em vez com alguém , digamos, compatível em relevo, hidrografia, clima, vegetação enfim, como seria de bom augruro prá um (a)cartógrafo(a).
Mapa-munição.
Planície planalto, rios e mares dantes nunca navegados por gente senão por monstros marinhos e a sereia se põe em cotovelos sobre joelhos tal qual joelho pedra.
Ulisses não resiste não.
Clima? Subentendido e instável.
Quem gosta do Caribe é gente má.
Tipo Augusto Cury.
Florestas, a amazônica tem menos perigo do que a doentia dança dum casal.
O que vale é o deserto que se tem no teto-cabeça. Aqui o silêncio , o vento de verdade, o inusitado.
Pero Vaz de Caminha até hoje não recebeu qualquer resposta honesta seja do reino portugues seja do resto de tempo e espaço nos quinhentos e tantos anos a valer do início do jogo.
Os outros doentes que responderam se manifestaram- em doença, inveja ou em plena verdade mas retornaram com o que aprenderam, alguns com o Augusto e outros consigo mesmos.
Mas todo mapa pode ser fraudado, assim como toda resposta pode ser uma grande mentira.
Nunca se sabe.

Bruno Scuissiatto disse...

Cartas Úmidas, o conto traz a sinestesia. Nada melhor que isso para diminar as palavras, neste ir e voltar. Li e reli, gostei.


abraxx

João de Sacrobosco disse...

Um dia, um cavalheiro nada gentil me convidou para uma dança. Não consegui responder porque o cheiro sufocava...

João de Sacrobosco disse...

E aí? Tem culhão para ler um emoblog de verdade?

T.A. disse...

e ae Paulo, só aqui pra te encontrar. estou postando no http://grandesssmerrrdasss.blogspot.com/ acesse e confie.