quarta-feira, 11 de julho de 2007

Simone e o amor.


(foto: Paulo Castro )

Mais que um ato, o gesto. Mais que o repouso, um abandono. Simone espera que eu conte sobre os "melhores anos" de sua mãe, aqueles em que interrompe a feitura do mais cotidiano dos diários, com a derradeira anotação: "Acho que amanhã vou conhecer o homem da minha vida". Nesses anos em que Simone estudara em Roma, com o mesmo tom de farsa que agora, no encontro, está ausente. Daqueles tempos em que sua mãe desaparecera, ao que tudo indica, por causa de "outro homem", que não seu pai.
Já adulta- e bonita, alta, delgada, feita de ângulos de captação do meu olhar( ponho e pus a culpa na imagem fora de mim, não cedendo à ânsia do suor, nas mãos e pés, sapato apertado que lateja, dedos sem anéis que garroteiam uns aos outros : devo parecer o que sou, antepassado), sentada diante de mim naquele restaurante em que almoçam todos os viajantes da estrada tumultuosa. Já grandinha - e tinha olhos e lábios, deste modo - para entender que certas escolhas acaloradas da vida é que definem as vírgulas de um sintético epitáfio.
Mas desafia-me, Simone, a preencher com o que eu teria para contar, nada menos que o verbo lapidar. Tento segurar a pompa dentro do peito insuflado: veja isso, Simone, que palavra é essa, veja que adjetivo, diante da humanidade que você me obriga, lapidar. Quem sabe verbo, se eu pudesse requerer uma biografia da minha intimidade obscura.
"Tem aí alguma fotografia daquela época?" - reinado de seu cigarro assoprado e disperso no ventilador de teto.
"Umas memórias, pretensões passadas, eu acho".
"Conte o que lembra, mesmo que trema desse jeito."
"Um cigarro...do teu?".
O diálogo é um vício ao qual nunca me entreguei. Mesmo a mãe de Simone ficava perplexa com a maneira com que eu resistia à sonoridade de significar alguma coisa, dessas de restaurantes e estradas ainda sem objetivo. Mas terá sido como a vida de Simone em Roma? Quantos amantes? De que forma desenvolvera esse ar de hostilidade na carne? Resisto, segurando na pompa, a fumaça cinzenta. E cruzando na altura de minha boca, erosão e secura, tensas, lacradas.
Porém, sinto que se eu não disser nada, nada oferecer, um resto de significado cuspido pela garganta, ela pode mais que apenas fugir, Simone, fugir de mim:
"Que milagre, as páginas amarelas, pensar que você me achou e que...".
"Quero folhear agora as páginas amareladas".
Não sei que gatilho foi disparado bem no frio da barriga, mas explodiu em gargalhada, dessas sem explicação nem causa, sem galho ou laço. Uma daquelas risadas tossidas, de modo que em lágrimas, Simone se desfaz em curvas fechadas, luminares, na minha frente. Que até me falte o ar, assim respiro aliviado em algum outro lugar interno, mas não suma, Simone. Até que vem a batida grave e repetida nas costas, o garçom me salva do que, com certeza, interpretou ser um engasgo fatal. Aponto as azeitonas empapadas em óleo, intocadas entre eu e ela, como se com isso, explicasse tudo, a geração do universo, das espécies, infâmia e traição. Azeitonas roxas. Que no entando, nada têm a dizer sobre a mãe do inquérito.
Vendo que estendo a mão por tempo demais, teatral indignação, o pires já nem mais ali na mesa, recolho-me em braços cruzados e coriza. Mais ainda, me abraço e enfio os dedos nas omoplatas que eu não me sabia tão curvas0. Se não estivesse com algo como febre, eu estaria muito sozinho com Simone.
"Você está bem?".
"Acho que não tenho nenhum atestado para me salvar dessa vez, sabe, a loucura, quem dera ser expatriado, colocado em caixa de papelão, nos arrebaldes da cidade, fechado e lacrado com fita grossa, até que perdesse - veja bem - não a esperança, mas o receio em ser encontrado. E se algum viajante exaltado de caos resolvesse ali enfiar sua faca, quem poderia me condenar se eu tivesse outro ataque de riso, como esse de agora mesmo ?"
Apesar do meu empenho, Simone não riu da piada. Saiu do seu abandono e gesto de ser angulosa, lisa, de uma irritação dissimulada em compassividade, apoiando os cotevelos na mesa, quase pronta a morder, ágil em não haver mais distância entre eu e sua seriedade bonita, assustadora, prenúncio de que entrava em embates dos quais saia apenas um para contar a história. Uma constatação confirmada da suspeita. E assombrosa. De todo modo, eu poderia lamber a sua testa nesse momento, enquanto ainda estávamos a dois, vivos. E finalmente, o restaurante na beira do nada voltou a fazer barulho de existir, mesmo o mundo, os carros e ônibus estacionados lá fora, a menina que chorava: leva tapa na cabeça mas não larga da mãozinha o molho confuso e magnético de coloridas fitas de Nossa Senhora Aparecida.
"Eu realmente quero saber da minha mãe. Não pense que foi fácil achar você".
Ela desejava mesmo entrar no mérito da dança. Que fôssemos. Eu, do meu lado, já não tinha lá muito o que temer, nem ao menos a piedade, amor à vida, como dizem os que andam nos acostamentos de mais além. Tirei os pés dos sapatos, sem reticências, no chão frio da vontade de avançar:
"Simone. Ouça, Simone. Tudo que ela foi, é você. Idênticas aos meus olhos. Mesmos gestos, além da petulância desrespeitosa. E já que é tudo isso, me deixe então falar. Sobre o amor. O amor, Simone. E o susto que daí sempre decorre, Simone. E você, suponho que aceite. Uma nova e repetida aventura, de certo..."
Agora não tem mais o que achar ou supor. Eu tentei lhe proteger, até obssessivamente, Simone. Minha Simone. Agora. Minha.
°

22 comentários:

Anônimo disse...

nossa q gostosa narrativa!!! Me deixou com vontade de maisssssssssss!

Adorei Simone, adorei o Amor e a coragem de se arriscar assim!

bjos
Paty VN

Unknown disse...

"Entender que certas escolhas acaloradas da vida é que definem as vírgulas de um sintético epitáfio...". Só essa frase me basta pra dizer : que coisa mais linda pra se pensar, absorver.

Grazzi Yatña disse...

Um caso de amor entre signo e significado pode dar mesmo uma senhora dor de barriga em restaurantes de beira de estrada.
Mas os cozinheiros por vocação nunca se importam.

Anônimo disse...

Como será que Simone tenta protegê-lo?

Pat disse...

Gostei muito deste seu texto!

Anônimo disse...

Oi Paulo...
Que foto...que texto...que cena...que tudo a hora em que o som volta à cena.O momento anterior era de um silêncio absoluto, daqueles que amo ver no cinema. E esta tentativa de proteger obsessivamente, só sentindo na pele para saber o que significa.Uma pena que quando somos jovens não sabemos interpretar tal atitude...
Falando em cinema: Fomos exibidos (Vaidade) no MIS no final de semana que passou e estamos entrando numa programação futura dos Cineclubes de Campinas.Parece que vão realizar uma Mostra de Curtas.
Só o cinema salva!!!
Carla L.

flaviooffer disse...

Caramba...Boa narrativa!
Abs.

Laa Kybele: disse...

Pois é my friend;
Concordo plenamente com a Carla- dá um curta do caralho... Não é afins de pensar neste bem-bolado?
Bom demaaaais este texto-
Beiijos!

Anônimo disse...

Simone vê a explosão do reencontro na loucura de uma noite lunática.

bacana véio.

Anônimo disse...

Amei a foto... o recorte de realidade destacado, congelado no tempo, o fragmento de um momento.


Fiquei tensa, o reencontro, a expectativa por palavras, as sensações e reações, a revelação do amor em um parto difícil.
Talvez naõ tenha sido desta vez...
Tenho que ir, meu onibus chegou.

Simone

Anônimo disse...

Paulo, Paulo.
Seus textos eu conheço bem, sempre leio, sempre mesmo. Adoro.
Só não sabia dos seus talentos fotográficos. Putaquepriu, viu? Que foto.

Fernanda Anhaia Mello disse...

Paulo....
SIMPLESMENTE LINDO!!!

Proteger obsessivamente, só sentindo na pele para saber o que significa,já protegi. não sei se obsessivamente mas...protegi e muito e não me fez bem.

3rd World Dude disse...

Que gatilhos se disparem no frio da minha barriga para que algumas gargalhadas se explodam. Que semana.
Grande texto, Paulão, e Los Muertos estão na área!
abraço cara!

Borboletas Embriagadas disse...

Paulo,


delícia é ficar um tempo sem ler suas 'complicadas letrinhas', por não estar preparada para pensar, já que pensar dói! E depois, ao encontrá-las sentir algo como um gozo...
Amei, foi a melhor que li ( hoje)...


Sua amiga que o ama muiiiiiiiiiiiiiiiito mesmo...

Flor de Papoula*

Clóvis Struchel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Clóvis Struchel disse...

Adentrei mesmo em cada linhas, em cada imagem, acho que eu era o esquisito da mesa ao lado, comendo com uma lentidão demasiada, ajeitando os óculos e lendo - sem ler! - um jornal de três dias passados...

Eu gosto dessas reticências, e de criar histórias dentro de outras histórias.



Simone e suas tatuagens...
hehe
E se ela não tiver tatuagens, eu digo que Juliana também não tem piercings! hahaha

Meu abraço, querido!
Até.

ps: Foi eu quem apagou o comentário acima, foi todo desconfigurado.Esse blogger está meio doido.

Anônimo disse...

Todos pocuramos Simone. Ou não?

Anônimo disse...

"Entender que certas escolhas acaloradas da vida é que definem as vírgulas de um sintético epitáfio...".

Realmente proporciona uma reflexão muito útil...

disse...

Tô comentando o último post, que vc falou de rock gaúcho, leito condensado e o kct a 4...
Cara, isso realmente é uma coisa que me preocupa: essas merdas musicais que estão por aí, e insistem em ser chamadas de "música"... tsc,tsc,tsc...
Depois que a gente tem filho é que liga pra essas coisas, antes disso manda todo mundo pra puta-que-o-pariu e tá tudo certo.
E aí?
Saudades de vc e das suas linhas...
E do nosso papo esquizo-prozac...
Beijocas ansiolíticas ;)

Samantha Abreu disse...

ufa!
que delícia de narrativa.

"O diálogo é um vício ao qual nunca me entreguei"

poderia até dizer que essa frase foi minha em algum momento da vida. Talvez de tantas pessoas... tantas outras.... e por isso, é fantástica.

Parabéns!
Beijo,
Samantha

JACAROA DE SANDÁLIA disse...

vi sua biografia no "culture e vulture" te achei estranhão!!!

beth tiritan disse...

o poeta diz que "de tudo fica um pouco"..será por que na gente cabe pouco? pq esse pouco é muito...de vc Paulo, sempre ficou em mim, uma marca, cravada...um carimbão gostoso, daqueles que brinquei, amando, na infância. é uma marca do SER, que mantem o respeito, a admiração, e a saudade...algo de mim que se reconhece, que te reconhece. bjo..que bjo é bom!!