Ele cortou a língua, cobriu-se, toda a pele antes exposta, pelo couro negro, preso atrás do crânio com cadeado inoxidável, que jogou a chave pela janela do carro, lá bem no lá longe do deserto, após perder dinheiro em Vegas, esposa em Paris, filhos em um hospital público, sem técnicas sobre apendicite ou infecção de amígdalas. Ele decepou as orelhas, a dor não trouxe o charme cult de se identificar com Van Gogh ou qualquer sujeito que se torne gênio às custas da dor. Onde ficou o tímpano e o nervo, encheu de mel e foi passear alegremente nas florestas adiante da casa, lá bem lá onde as abelhas fazem seus favos e fomes.
Por fim, ele executou o que faltava:
Tomando dois chumaços de algodão, mergulho-os em ácido, o mais corrosivo que se vendia nas lojas de equipamentos de ascese, e dessa forma agindo, colocou fim às narinas, fervendo um grito no último cheiro atroz, no entanto, satisfeito.
Sabendo que os olhos seriam a derradeira ação de seu projeto filosófico, antes leu poemas, viu uma moça bonita nua e amarrada na cama a contragosto, apreciou o desastre de si mesmo no espelho. Com uma colher de prata, tracejada de lindas linhas barrocas, do rococó espanhol, arrancou os globos e comeu a última imagem que reservou para esse momento, algo especial, o final da sua vida nos sentidos: a parede branca e mofada da sua casa, uma parede como outra qualquer, a evitar as saudades. Com a bengala apoiada sobre a mesa em que antes escrevia, pintava, fazia sexo, se orientou até a cama, soltou a moça, que saiu berrando horrorizada, mas isso ele já não mais poderia ouvir, nem ver, nem se emocionar.
No dedo anelar da mão esquerda, sobre a cobertura das camadas protetoras de couro, brilhava a aliança. Se ele quisesse nos mostrar o que estava gravado em sua face interna, saberíamos seu nome completo, iniciado pela letra alfa, finalizando com o ômega.
Jogou a bengala para o canto e estava finalmente livre da maldição de se orientar, de saber onde estava e para onde gostaria de ir. Agora todo lugar era qualquer lugar e toda coisa poderia servir de alimento, ratos, doces, fezes, flores.
Quando eu o encontrei deitado no tapete da sala, ele fedia, dormia e sorria. Li a sua história, bem amarrada na cintura, sem pedir nada ao final, sem contar que podia estar roubando, matando, mas estava pedindo. Ele não pedia. Existia gratuitamente ali, dobrado sobre si, a sonda saindo de um pequeno orifício onde deveria estar seu pau, outro buraco na bunda, insetos, seus ovos e larvas por ali.
Não sei como foi o que se seguiu.
Mas o abracei e vomitei sobre ele. Um vômito que deveria, descobri depois, ser chamado de julgamento moral. O nojo não estava mais com ele, mas em mim. Ele já não sabia em que estado se encontrava, poucos ou quase nenhuns estímulos deveriam chegar até ele.
Eu o alimentei durante semanas com o que tinha de melhor em casa. É o que faz um solitário diante do sofrimento maior que o dele mesmo. Então, no nosso segundo aniversário de meses juntos, eu descobri, meditando como o sorriso constante dele me ensinou, que ele não sofria. Eu sim.
Passei a alimentá-lo com toda a matéria mais repugnante. Coisas que saiam de mim. Que eu pedia aos amigos que coletassem de suas famílias, de seus filhos que passavam mal após o camarão com catupiry. Ele comia, devorava, na mesma beatitude que meus olhos – e todos os sentidos – perceberam desde o primeiro dia. Eu limpava sua sonda e seu buraco.
Eu estava, na falta de palavra melhor, fascinado por ele, apaixonado. Sim, a gente também fazia sexo. Ou eu apenas fazia sexo com ele, suspeito. Caso ele desconfiasse, em algum lugar daquela mente santificada e muda, não deveria se importar. Quando a gente ama, não quer saber de mais nada nem ninguém. Parei de ir ao cinema todas as quartas-feiras, todos os dias. Evitava as visitas. Não mais pedia para os amigos produzirem alimento para ele. Eu mesmo tomava os remédios que liberavam a produção. Tinha ciúmes dos excrementos alheios. Com o meu sim, feliz e assobiando, fazia sopas e mousses, não fazia diferença para ele, mas para mim sim. Nossa paixão pode até não notar as pequenas delicadezas que fazemos, pode não senti-las, como maridos desatentos, esposas que passam o dia no escritório e freqüentam happy-hours com os colegas e o chefe, mas isso não diminui, em nós, seres humanos, portanto dignos dos nobres sentimentos, o querer agradar nosso objeto de desejo.
E não é que com amor tudo fica mais gostoso? Desenvolvi um apetite tão refinado quando o que impus a ele. Jantares românticos e urina dentro das garrafas de vinho, água de poça oleosa, tudo que todos, os que não amam, julgam de maneira extremamente equivocada.
Também mandei fazer uma aliança para mim. Com o meu nome, eu passei a me orgulhar dele, como nunca antes, como a solidão nunca permitiu, e escolhi meus símbolos, o OM antes e o yin/yang depois. Um pedinte esfarrapado foi nosso padre, chapado pela bebida mais cara que eu pude pagar. Afinal, era um papel e tanto, consagrar o matrimônio. Na festa, meu amor deve ter notado algo, emitiu atrás da máscara negra algo que parecia choro, vindo do mais fundo lá do lá mais fundo dele. Com certeza estava alegre. Merecia comemoração.
No jantar tivemos uma tremenda comunhão: padre-pedinte ao molho de uísque, com champignons, pedaços ao forno, desossado. No Natal as pessoas embebedam pobres perus. Todo Natal morre um peru em cada casa. Inocentes bichinhos. O nosso padre deve ter feito muitas coisas erradas até aquele dia de nossas vidas e se eu o deixasse escapar, outras tantas faria. Não era inocente como eu, meu querido e os perus. Santificado foi pela arte da gastronomia. Estava uma delícia. Supimpa.
E ainda emocionado, meu amor chorou por mais cinco dias seguidos. Ele, o adorável. Ele, que eu penetrava a cada quinze minutos, paixão como essa nunca se viu. Telefone cortado. Energia elétrica interrompida. Para quê tudo isso?
O amor é telepata. O amor produz sua própria luz.
E chorou por mais um mês. Os buracos em suas órbitas vazias gemiam contrações musculares violentas.
Todo grande amor, esse digno de versos e canções, é meio trágico. Romeu e Julieta.
Tristão e Isolda.
Oscar Wilde.
O Jovem Werther.
Coloco-o sentado diante de mim. Eu estou sentado diante dele, o querido, a minha vida. Ele geme como um trovão sublime. Emoção demais. Outros achariam piegas. Nunca se apaixonaram, pobres diabos. Então era isso. Dei o primeiro tiro na testa dele. E dou agora o segundo tiro na minha boca. Espero sentir um pouco o sabor, o cheiro, a cor, a textura, o som da bala arrebentando dentro de mim. Coisas grandes devem terminar de forma grandiosa.
Gatilho quente. Que o mundo saiba: fui feliz.
Por fim, ele executou o que faltava:
Tomando dois chumaços de algodão, mergulho-os em ácido, o mais corrosivo que se vendia nas lojas de equipamentos de ascese, e dessa forma agindo, colocou fim às narinas, fervendo um grito no último cheiro atroz, no entanto, satisfeito.
Sabendo que os olhos seriam a derradeira ação de seu projeto filosófico, antes leu poemas, viu uma moça bonita nua e amarrada na cama a contragosto, apreciou o desastre de si mesmo no espelho. Com uma colher de prata, tracejada de lindas linhas barrocas, do rococó espanhol, arrancou os globos e comeu a última imagem que reservou para esse momento, algo especial, o final da sua vida nos sentidos: a parede branca e mofada da sua casa, uma parede como outra qualquer, a evitar as saudades. Com a bengala apoiada sobre a mesa em que antes escrevia, pintava, fazia sexo, se orientou até a cama, soltou a moça, que saiu berrando horrorizada, mas isso ele já não mais poderia ouvir, nem ver, nem se emocionar.
No dedo anelar da mão esquerda, sobre a cobertura das camadas protetoras de couro, brilhava a aliança. Se ele quisesse nos mostrar o que estava gravado em sua face interna, saberíamos seu nome completo, iniciado pela letra alfa, finalizando com o ômega.
Jogou a bengala para o canto e estava finalmente livre da maldição de se orientar, de saber onde estava e para onde gostaria de ir. Agora todo lugar era qualquer lugar e toda coisa poderia servir de alimento, ratos, doces, fezes, flores.
Quando eu o encontrei deitado no tapete da sala, ele fedia, dormia e sorria. Li a sua história, bem amarrada na cintura, sem pedir nada ao final, sem contar que podia estar roubando, matando, mas estava pedindo. Ele não pedia. Existia gratuitamente ali, dobrado sobre si, a sonda saindo de um pequeno orifício onde deveria estar seu pau, outro buraco na bunda, insetos, seus ovos e larvas por ali.
Não sei como foi o que se seguiu.
Mas o abracei e vomitei sobre ele. Um vômito que deveria, descobri depois, ser chamado de julgamento moral. O nojo não estava mais com ele, mas em mim. Ele já não sabia em que estado se encontrava, poucos ou quase nenhuns estímulos deveriam chegar até ele.
Eu o alimentei durante semanas com o que tinha de melhor em casa. É o que faz um solitário diante do sofrimento maior que o dele mesmo. Então, no nosso segundo aniversário de meses juntos, eu descobri, meditando como o sorriso constante dele me ensinou, que ele não sofria. Eu sim.
Passei a alimentá-lo com toda a matéria mais repugnante. Coisas que saiam de mim. Que eu pedia aos amigos que coletassem de suas famílias, de seus filhos que passavam mal após o camarão com catupiry. Ele comia, devorava, na mesma beatitude que meus olhos – e todos os sentidos – perceberam desde o primeiro dia. Eu limpava sua sonda e seu buraco.
Eu estava, na falta de palavra melhor, fascinado por ele, apaixonado. Sim, a gente também fazia sexo. Ou eu apenas fazia sexo com ele, suspeito. Caso ele desconfiasse, em algum lugar daquela mente santificada e muda, não deveria se importar. Quando a gente ama, não quer saber de mais nada nem ninguém. Parei de ir ao cinema todas as quartas-feiras, todos os dias. Evitava as visitas. Não mais pedia para os amigos produzirem alimento para ele. Eu mesmo tomava os remédios que liberavam a produção. Tinha ciúmes dos excrementos alheios. Com o meu sim, feliz e assobiando, fazia sopas e mousses, não fazia diferença para ele, mas para mim sim. Nossa paixão pode até não notar as pequenas delicadezas que fazemos, pode não senti-las, como maridos desatentos, esposas que passam o dia no escritório e freqüentam happy-hours com os colegas e o chefe, mas isso não diminui, em nós, seres humanos, portanto dignos dos nobres sentimentos, o querer agradar nosso objeto de desejo.
E não é que com amor tudo fica mais gostoso? Desenvolvi um apetite tão refinado quando o que impus a ele. Jantares românticos e urina dentro das garrafas de vinho, água de poça oleosa, tudo que todos, os que não amam, julgam de maneira extremamente equivocada.
Também mandei fazer uma aliança para mim. Com o meu nome, eu passei a me orgulhar dele, como nunca antes, como a solidão nunca permitiu, e escolhi meus símbolos, o OM antes e o yin/yang depois. Um pedinte esfarrapado foi nosso padre, chapado pela bebida mais cara que eu pude pagar. Afinal, era um papel e tanto, consagrar o matrimônio. Na festa, meu amor deve ter notado algo, emitiu atrás da máscara negra algo que parecia choro, vindo do mais fundo lá do lá mais fundo dele. Com certeza estava alegre. Merecia comemoração.
No jantar tivemos uma tremenda comunhão: padre-pedinte ao molho de uísque, com champignons, pedaços ao forno, desossado. No Natal as pessoas embebedam pobres perus. Todo Natal morre um peru em cada casa. Inocentes bichinhos. O nosso padre deve ter feito muitas coisas erradas até aquele dia de nossas vidas e se eu o deixasse escapar, outras tantas faria. Não era inocente como eu, meu querido e os perus. Santificado foi pela arte da gastronomia. Estava uma delícia. Supimpa.
E ainda emocionado, meu amor chorou por mais cinco dias seguidos. Ele, o adorável. Ele, que eu penetrava a cada quinze minutos, paixão como essa nunca se viu. Telefone cortado. Energia elétrica interrompida. Para quê tudo isso?
O amor é telepata. O amor produz sua própria luz.
E chorou por mais um mês. Os buracos em suas órbitas vazias gemiam contrações musculares violentas.
Todo grande amor, esse digno de versos e canções, é meio trágico. Romeu e Julieta.
Tristão e Isolda.
Oscar Wilde.
O Jovem Werther.
Coloco-o sentado diante de mim. Eu estou sentado diante dele, o querido, a minha vida. Ele geme como um trovão sublime. Emoção demais. Outros achariam piegas. Nunca se apaixonaram, pobres diabos. Então era isso. Dei o primeiro tiro na testa dele. E dou agora o segundo tiro na minha boca. Espero sentir um pouco o sabor, o cheiro, a cor, a textura, o som da bala arrebentando dentro de mim. Coisas grandes devem terminar de forma grandiosa.
Gatilho quente. Que o mundo saiba: fui feliz.
17 comentários:
Ducaralho!
Do caralho!
Do caralhaço!
Escrito pra lá de bom, bem construído, com referências e com uma pegada bem característica sua Pauleira.
É muito bom entrar aqui e ler seus escritos.
Jovem Werther, Oscar Wild...
Riscou e arriscou e chapiscou legal!
Beijabração Véio.
Paulo,
você escreve algo tão próprio, tão FORTE; tão lindo! Achei lindo e fico pasma comigo por me sentir assim! É amor de verdade, com suas peculiaridades, longe do 'certinho' que tentamos diariamente absorver.
Beijo na boca! Com saliva, sabor, cheiro e língua!
Flávia Trigo ou Flor para os amigos de verdade. Meigo? :) Eu enxergo amor e meiguice em você, não adianta esconder-se!
Oi Poeta...forte não seria palavra, eu nem sei qual seria. Mas nossa, é absurdo o poder de suas palavras. Esse texto me doeu a alma, me causou nauseas, tristeza, dor e alívio.
Como disse o Cássio aí em cima: "Do Caralho!" é a melhor forma de expressar a satisfação em ti ler.
bjosss
Paty VN
Afetos, beijos, tapas...tudo isso não é pra mim.
Acordei com esse interessante casal hoje pela manhã.
Eles dormiram comigo, os dois, no travesseiro solitário que eu abraçava e rezava.
Um delírio, um sonho.
Ou nossos vizinhos.
Ou mesmo quem mora em nossa casa.
Em nós.
Valeus.
°
Desnunando os pensamentos e opinioes com poesia. Doa a quem doer.
Faco minhas as palavras do Cassio ali em cime, DUCARALHO!
No meu de tantos elogios,
deixo pra vc
um beijo.
Não há como negar que um amor nesses moldes (ou sem molde algum) transcenda qualquer conceito medíocre e hollywoodiano de amor.
É muito fácil amar o belo, o salubre, o socialmente bem visto e o politicamente correto.
"Existia gratuitamente ali"
"Os buracos em suas órbitas vazias gemiam contrações musculares violentas"
Cara, que delícia de texto! Sem ironia nenhuma! Bravo!
Preciso te entender de novo.
caro irmao
carne crua, entranhas sangrentas de amor....
grande abraço beat
Montanha
Construção da destruição.
Sistemática e inexorável.
Como é um grande amor.
Qualquer amor.
:*
Quem experimentou...conhece...entende...
Amor é amor.
Muito bom...ame muito...sempre.
Bjo.
Primeiro um eca...
Depois um "onde ele quer chegar"?
Por fim... chegastes!
Fostes muito além do princípio de amor, chegastes a abnegação, experimentação,escravidão, dependência, fissura, fusão...sobrenatural!!
Diferente, próprio, gostei... Tinhas razão, não passei mal.
Bjo
Dani
Falei de Romeu e Julieta esses dias
Com o Ernani
Ele acha que amor assim ainda existe
Eu digo que não
Virou tudo clichê
Mas vai saber
Pode ser que paramos de enxergar
Desde que arrancamos os nossos olhos
Ô Paulo
Vc sabe que seu texto é bom demais, vc sabe como ninguém exorcizar todas as misérias humanas e sempre com uma relação
afetiva profunda.
Eu é que ainda trago muito nojo em mim.É muito difícil superá-lo para filmar o que vc tecnicamente vomita.
Mas daria um roteiro do caralho...rs...
Carla L.
Absurdamente bom! Inconcebivelmente impensável. A potencialização do amor incondicional e do amor próprio!
Repensarei este texto, em especial, pq este merece maior reflexão e frutos.
beijos abobalhados ante sua criatividade e sensibilidade
Sim, é um roteiro para Cronenberg filmar.
Bem "Naked Lunch"
Muito bom!
Abraços.
Paulo D'Auria
http://paulodauria.zip.net
Já li outros contos que vc escreveu que são melhores - aonde não encontro somente uma imagem forte mas tb um pensamento agudo. Neste o forte é a imagem que o conto gerou. Abraços.
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