quinta-feira, 17 de maio de 2007

O Livro Único: das mãos estranhas.


Tenho em minhas mãos a edição rara de DelVechio & Morales achada hoje acidentalmente em um sebo no centro da cidade.

Acordei com uma motivação espetacular, algo, algo iguamente raro, como a edição de Costumes do Bom Homem, me movia para o meio das gentes. E eu conhecia bem esse sentimento, tal qual Borges, cujo corpo servia de anteparo para as obras "certas", o meu servia de membrana volátil às obras explicitamente erradas. Como uma forma deliciosa de maldição, mesmo quando me posicionava adequadamente com as formas de um tempo, vinha a euforia pela letra maldita, algo incontrolável, que desse mundo me despregava as normas, as vertentes absolutas de uma certeza;

Diante disso, agora trato do não-raro, perdia tudo, dinheiro, sanidade, família, tudo em nome de argumentos, paisagens, provas que me jogavam na montanha-russa do entendimento: não havia como voltar atrás.

Pelo bem dos outros, após quase uma dezena de achados bibliográficos infernais, tantos filhos que me cuspiram na cara e mulheres com facas e direitos femininos, me fiz sozinho em um apartamento quarto-banheio.

No início havia uma sala. Mas ela virou quarto ampliado, parede ao chão, de mal-cheiro aos pedreiros com lavandas e desodorantes eucaliptóides. Agora meu quarto era biblioteca, muito mais que cama. Entre um e outro livro destruidor, eu acumulava tratados de virtudes, religiões, todos os momentos de sabedoria e ditados construtivos da farmacopéia ética popular. Me alimentava, igualmente, das Confissões sublinhadas e Cidades Divinas circuladas de Santo Agostinho. Tomás de Aquino, divinizava o perigo de Aristóteles: afirmava-me existir um "ser", mas o moralizava adequadamente.

Tudo isso mais os atos. Quase que apostólicos. Das esmolas ao dizimo, da gratuidade bondosa até compromissos com retiros e todas aquelas fazendas naturebas.

Mas de tempos em tempos, ali se via, um exemplar raro, o sangue ferver, a mudança escatológica na vida.

Meu quarto & banheiro se tornavam meu protetor manicômio. Com a idade, aprendemos a amar manicômios, prisões e conventos. E digo isso não apenas para citar Goffman, que poucos devem saber de quem se tratra.

Percebam o que lhes acontece aos 30.

Diminuimos de tamanho, ano a ano, e por proteção contra tal decadência física, desejamos contenção.

Ela geralmente é bem-vinda entre os seres.

Mas eu e minha maldição dos livros errados.

Inegável paixão, encontro destinado, uma doença assexualmente não transmissível, ou seja, a solidão risonha.


E o que há de errado com os Costumes, del Vechio & Morales ?

A começar: nenhum estudioso até hoje, nenhuma academia até agora - se bem que foram tambpem raros os a se debruçar sobre o Tratado - conseguiam datar a obra.

Reza a lenda de almanaque culto: Dois assassinatos envolvendo a disputa pela melhor data - no meu entender, diabolicamente aleatória, eu que nada tenho com os bancos de ensino e lousas arrepiantes - eram narrados, mortes de professores que se meteram a identificar não um ano exato, longe disso diante de dois autores, ou apenas um de nome erradamente cunhado em italiano e outro, espanhol, mas um século em que tal livro poderia ser, não encaixado, mas acalmado...

Nenhuma referência quanto à maneira de ver Deus, ou em alguns capítulos temos deuses, o que piora a situação não só histórica, mas protetora de sanidade: na obra, temos toda uma genealogia de divindades nunca antes relatas em nenhuma tradição. E terríveis. Sem paralelismo, desculpa que a Religião Comparada, ou o estruturalismo totêmico, forjam no intuito de acalmar as almas. Quem já ouviu falar de um deus que nasceu do arroto molhado e embriagado de uma deusa-mãe que se prostituia no alto do Esgoto, nome dado ao Éden ? Mas por outro lado, se tudo é ficção em tal campo, tudo também é verdade, se assim tocar e peturbar o homem. Todo papo sobre o mito que leva gentalha hoje a orgasmos peripatéticos, Paris e danbrosismos cinematográficos estão aí que não me deixam mentir. E assim sendo, creio no que se move dentro de mim, ou seja, toda mulher universar tem o seu lado puta e dessa puta que somos descententes loucos.

Que assim seja. Estaria resolvido. Mas em outro capítulo, os dois, ou o um escritor ( serão mais ? uma organização secreta ? se o for, agora, hoje, abajour intenso, onde procuro "meus irmãos" iniciados ?), afirma haver apenas um Deus verdadeiro, o Perene, o que deve ser exaltado. Mas memso aí, na contradição, não se acalma o intelecto. O Deus único é resultado da fusão de todos os outros, em algo que é chamado Grande Orgia Ontológica...

Ou seja, nenhum movimento histórico, apenas a ressaca, sim, repito, a ressaca que deixa com que o lado terrível do Deus judaico-cristão, do Buda, de todos esses caras seja a suprema verdade. Se todos os deuses estavam construindo os costumes do bom homem, em determinado momento se cansaram, se fundiuram, uniram forças...e isso nasceu do tédio, do fim-de-festa univarsal. O Deus da soma, o Único, é mal humorado. Está com enxaqueca. Ele é um lago escuro, tanto que possui nomes proibidos, apelidos que não suporta ser chamado por qualquer um, enfim, um sujeito mimado, chefe de algum espediente de almoxerifado, a saber, a minha existência aqui nesse mundo e a de todos nós.

A linguagem do livro.

Pode ser de algum canto de taberna, o Renascimento. Ou o barroco. Ou satírico de Apuleio. Ou então, mesmo então, um evangelho, uma profecia antes do Cordeiro. E como tudo isso ? Só há duas explicações e nenhuma delas me causa conforto, me impede de cometer atos irreparáveis contra mim mesmo ou ou outros:

a) O texto é uma compilação de vários textos malditos pela História da humanidade. Atrás dessa corruptela autoral, do binômio estranho, existem cem, mil homens que se uniram no intuito de provocarem em mim a paranóia com provas, ou seja, a intuição desejosa da catástrofe. Não é uma bomba. É um sebo humilde, envergonhado, anão diante dos edifícios luzentes, chamtivas pratas de incontáveis andares e portas, através das quais, uma maioria de homens com a minha idade ganha dinheiro e paga a mensalidade do clube e da ginástica dançante, ou sei lá o que, de suas filhas colegiais que escondem a calcinha na bolsa. Se não posso encontrar meus irmãos de anti-fé, onde encontrar meus assassinos. E o que piora tudo isso? Saber que se alguém se interessa em tudo isso no cosmo, esse alguém sou eu. Ou seja: Eu devo continuar o livro, e nunca publicá-lo, esconder em alguma livraria, em algum armário, até que a próxima vítima, nos próximos séculos, encontre. Mas eu não posso estar certo. É uma terrível arma que me foi destinada. Contra isso, tenho apenas:

b) O texto é de apenas um( no máximo dois) autores. Isso faria com que eu relaxasse. Nada tenho a continuar. Está já tudo escrito. Basta queimar - sempre a melhor saída - a obra, os autores. Buscar em todo mundo as edições remanescentes e dar-lhes fim. ( Quando foi a primeira vez que ouvi falar disso tudo ? Algo envolvendo um meu avô, ou tio, uma palavra dita no ouvido e uma mágica que não se parecia com ilusionismo. Ou sonho. ). Novamente, o livro me empunha um trabalho sem fim. Países. Desconfianças geográficas. Risco de amores que já não espero para mim, já não acho...seguro. E ainda não terminou. Se temos apenas Vechio & Morales e acaba aí a autoria, como esses dois conseguiram tamanha...atemporalidade? Tenho aqui no quaro-(sim, biblioteca)-banheiro, um sem número dos chamados escrotamente "autores-pós-modernos". Pois sim, na audácia da escrita não superam essa luceferiana edição que aqui treme nas minhas palmas. O que dizer das cento e trinta páginas, após o advendo da epístola "Uma Carta Para os Enganadores Surrupientos", lotadas apenas com a sequência do alfabeto ( não, na edição não consta editora, nem tradutor, apenas as páginas amareladas contrastando com a perfeição gráfica das letras em Garamund) , de "a" até o "z", seguida de nomes hebraicos que, se traduzidos e decentemente codificados em números, temos as mais terríveis maneiras de insultar médicos, advogados, esposas, maridos, débeis-mentais, homossexuais, negros...e então, a volta, a grande volta, até mesmo e principalmente os judeus. E assim, recomeça novamente o alfabeto, todo, inteiro, em diversos tamanhos. Não tem para ninguém de hoje, para nínguem do sondável meio literário do amanhã. Assim, que tipo de ser humano foi/foram Vechio ( juro que não falta um "c") & Morales ? O que pensar de Júlio Verne, ou do verme Nostradamus ? O que pensar de tudo que aprendi, das categorias espaço-temporais ? Da minha militância política, da minha primeira paixão com chicletes desleixados e assim, quase beatnicks ?


E quem tem coragem de queimar ?

Apenas homens muito bons e cheios dos costumes.

Não é, por maldição intuitiva e euforia, meu caso.


Durmo, leio, vomito, acordo. Durmo. Palavrões hebraicos. Deuses com corrimento uretral. Anjos lambendo a micose - chamada de mundos e universos - do Pai. Vomito.


Entre (a) e (b), deliro uma febre que chama "c".


Entre tantas letras, deliro uma e outra, um suor que se chama "escolha qualquer uma ao acaso".


" O homem de bom costume deve ser um bom homem sem o costume de certezas e opções"

( pg. 482 ).


"(...) dessa forma, o sexo feminino é o balde em que o homem se descobre como a roupa suja do êxtase erótico(...)

(pg. 49, repete na 789 e na 834)


"Os namoricos devem servir ao deus Xacopy-là, ou seja, os namoricos servem para emancipar o livre seguimento das corrupções essenciais humanas".


Durmo, acordo. Acordo.


Dia de sol gritante. O travesseiro joguei pela janela.

A edição serve-me como tal à cabeça e pescoço latejando.

Manhã.


De tarde, vejo quinze vasos com macaquinhos pulando vivamente, onde só havia um vaso. O sanitário.


Tantas letras e imagens. Promessas do infundado. Algo que surge.

Sim, pois é isso.

Respiro aliviado.


E assim, respiro no plano até a noite:

Lista telefônica.

Abro em qualquer página, coisa que sei fazer como rato que sou.

Qualquer letra. Gratuidade.

Alguns sobrenomes, nomes, endereços e mesmo números de telefones demonstram, para o neófito da Obra, uma letigimização da fraqueza. Do apelo:


- Srta. Munchal ? Tenho uma entrega. Que me confirme o endereço, por obséquio. A mando de quem? Deixe-me ver. Apenas assim, na contra-capa, caneta esferográfica. "De um admirador da sua sagacidade espiritual". Faz sentido? Não quero cometer erros, senhorita. Que bom! Para quando então, o motoboy ? Já é tarde? Oras, de forma alguma um trabalho, e se o for, é o meu mesmo, Srta Munchal! Sim, claro que posso chamar de "simplismente Regina". Ficamos aqui na agência muito felizes com pessoas felizes. Elas são a satisfação do nosso desejo, Regina. Então, fica assim: hoje mesmo. Claro, só o tempinho de eu chamar o moço das entregas. Não, de forma alguma precisa esperar no portão! Faça um chá. Beba um vinho. Não é todo dia que um admirador espiritual aparece nesse mundo de matéria, né ? Boa-noite, Regina ! Meu nome? Por Deus, apenas um teu servo! E nada de gorjeta para o motorista, ele bem já recebe! Fique com os anjos. Adeus.


Me sinto como um habitante dos prédios altos fazedores de dinheiro suspeito. É bem fácil. Me sinto nos dias de hoje. Vou até as Páginas Amarelas. M, M. "Motoristas". Não, antes, "motoboys, serviço de".

Anoto o devido prometido na contra-capa e anuncio algo mais: "Para Regina, a sucessora de uma maldição".

Um dia ela entende.

Nem que seja ao lado do deus Yuter-Rom-La.


°



5 comentários:

Anônimo disse...

Nossa tô tonta rsrsr
Amanhã releio e comento!!! Acho q preciso expandir meu HD =)

Mas é sempre bom ti ler...mesmo quando fico tonta!
bjos
PatyVN

Borboletas Embriagadas disse...

Paulo,

sono e a maldição da curiosidade fizeram das minhas três leituras uma satisfação enorme! A princípio amei as seguintes reflexões, dentro do contexto, óbvio:

"Inegável paixão, encontro destinado, uma doença assexualmente não transmissível, ou seja, a solidão risonha."



"E assim sendo, creio no que se move dentro de mim, ou seja, toda mulher universar tem o seu lado puta e dessa puta que somos descententes loucos"

Outras que li, causaram-me um grande desconforto, mas a curiosidade não permitiu que eu parasse... Foi quando surgiu:

“E quem tem coragem de queimar ?

Apenas homens muito bons e cheios dos costumes.

Não é, por maldição intuitiva e euforia, meu caso.”

Compreendi sua obra... Das duas uma, ou você é um cara superdotado, especial... ou é de outro espaço! Adoro suas idéias!

Bjs.


Flor

Anônimo disse...

Bom dia Poeta!!!

A leitura de hj não me deixou tonta. Talvez tenha sido a velocidade q tenha me deixado ontem. Mas hj, ao acordar mais desacelerada li novamente e foi de um prazer inenarrável q me alimentei de duas palavras.

Muito bom começar o dia assim, obrigada por compartilhar seus escritos mais uma vez.

bjos
PatyVN

Thaty Marcondes disse...

Li, de uma vez só, com certo reconhecimento de pensamentos e conclusões, talvez por ser afeita e talvez feita (ou não) sob medida pra certos assuntos outros (e loucos, para os ditos normais acestrais populares gnósticos de qq credo). Inveja, confesso, e curiosidade. Quando não quiser mais tais páginas de lucidez extra-sensorial, te passo meu endereço. Aceito a entrega e aí sim, só depois, confabulamos mais, ao pé do ouvido ou num brinde espiritual.
Aguardo, pois.
beijos e continuo a pensar e a remexer minha curiosidade por aqui, olhando a chuva e o dia frio, cinza, plúmbeo, adequado para tais questões para além da calma da alma e da paz de espírito

Paulo D'Auria disse...

Muito bom,

Bastante Borges, mas com um tempero beatnik-brasileiro!

Abraço,
Paulo D'Auria
http://paulodauria.zip.net