terça-feira, 22 de maio de 2007

O Lago Secreto.








Quando lembro dos jardins da infância, constato, não é o menino, mas as flores e matagais que possuem algo de diabólico, incurável no cedo da idade, no alvorecer dos músculos: temos tardiamente a consciência do mal; o saudosismo.


Caminho com Elle pelas alamedas floridas em todas as épocas do ano. Embarcamos no porto há dois meses e só chegamos no dia de hoje. O dia é sol, com espumante, o mar ao longe, atrás da cascata que a mesa de metal, rendada, impõe aos nossos, meus( não divido todas as sensações com Elle, a nossa combinação sobre planos de um amor duradouro), olhos, enfim, o navio e, soterrado nele, um pouco da lógica, se vai em fragmentos simbólicos. Foram dias felizes sobre as águas. Ao menos para Elle, que nunca sabendo da semântica portuguesa sobre seu nome, sentia-se sorrisos. Em mim, sonhos proibidos, os meninos quando eu era apenas menino, as brincadeiras.


- Querida, bebamos para esquecer.

E ela, inocente, "in vino veritas" :

- E também para lembrar.


O que te perturba é o vício da hermenêutica.

Ela me disse isso na tarde em que nos conhecemos em Viena. E durante a noite que se seguiu ao museu, em meu hotel, combinamos a viagem. E o algo de segredo entre nós. Mantimentos de matáforas que asseguravam, de um lado a paixão, de outro, a distância do olhar, típica unicamente dos fantasmas.

O afeto é uma assombração.

Foi isso que respondi, sem cobrar que ela entendesse.


Minha mãe cortava os caules antes que os botões se abrissem. Ela via algo de indecente não não pétalas, mas na queda das mesmas sobre o gramado. Mulher bonita, de uma ruiva coisa que perturbava e excitava todos os meninos, eu o patrãozinho, os outros, joguetes dos humores climáticos, dos desejos que eu impunha em nossos destinos de veraneio. A cada novo ciclo de solstício, meu pai mudava todos os empregados. De seus ombros largos- Elle ficara impressioada diante das fotos- uma cabeça protestatante. Sim, fazer o bem, mas com limites. Se os limites paternos seguiam os fluxos naturais, a moralidade das chuvas antecipadas em seus estudos físicos, a minha expansão vinha dos brotos decepados, que um a um, eu colocava na boca, que um a um, dividia nas bocas dos outros meninos.


Elle disse que pagaria qualquer quantia para dormir em meu quarto, agora apenas mais um quarto, na pousada, o prédio principal, em que durante o check-in, ela me disse que pagaria qualquer quantia por deitar no simulacro atual da minha cama. Como satélites, erguiam-se bangalôs, preferidos pelos turistas comuns, joviais paredes, janelas para a brisa. Meu quarto, com sua ausência de banheiro, era um dos mais baratos, informou o gerente. Elle pareceu frustrada. Para alegrá-la, fomos colher flores, o que, diga-se de passagem, era proibido. Novamente aberta aos sorrisos, Elle me abraçou e disse algo sobre Rimbaud e a gratuidade das cores que a Natureza oferece em sacrifício para o gozo estético. Eu assenti e me senti calmo. A nossa cama, nunca seria a minha cama. Traças da memória. Com o pedido, Elle achou ter atingido algum segredo meu. Simulei um suor de extremidades, sem que ela visse, absorta por uma sequóia. Cuspi nas mãos e as esfreguei. Para confirmar o quão distante Elle estava dos meus medos, perguntei:


- Quer ainda hoje visitar o lago?

- Não, querido. Deve ser cansativo. Vamos reservar um dia para isso. Um dia inteiro!

Ou ela continuava inocente, ou já descobrira que


Eu e os meninos no lago. Folhas boiavam e se entrechocavam. Eu e os meninos boiávamos. E tudo mais. Um jogava, então, jorros de água no outro, até que tudo jorrasse com uma violência de sons que fazia com que os pássaros revoassem, sinfônicos. E quando tudo se calava, os olhos fechavam, tudo jorrava e lábios mordidos. Em silêncio de nunca confessar. Voltávamos por caminhos diferentes. Eu, para a casa sobre o morro. Eles, para seus afazeres precoces. E no próximo verão eles não mais existiriam, qualquer remorso devolvido para as ilhas, de pequenos barcos que os levavam, trechos de suspiros. Segredos como paixões.


O jantar era adequado, pato e uvas. Elle e eu falávamos de caça, e logo sobre as ternuras da carne bem caçada, esperteza do atirador: quando mais perverso fosse, bem escondido, estrategista, melhor seria o sabor. Um sabor de infância mole. Molho de uvas melhores que o vinho, notamos também isso. O que nos espantou: não sabia de antigas ou recentes uvas por aqui. O vinho, o mesmo vinho, poderia ser conseguido em qualquer quanto do planeta, em uma espera máxima de doze horas, segundo nossos cálculos. Mas a uva não. Ressecada, sem umidade, sem sexo. Elle que disse: "Sem sexo". Só conhecendo-a para saber que isso não era desejo em si, mas um avanço de suas peças sobre o tabuleiro: meu corpo nu, meu corpo ainda despelificado. Voltavam por vezes os meninos daquele verão ou outro. Eu fingia tomar minha trilha e quando tinham desaparecido, deitava na terra - úmida - que cerceava a lagoa. E ficava em paz e alguma dor que alienava minha carne de mim mesmo, a satisfação plena antes do primeiro e fundador tombo adulto. Unhas e arranhões que as calças escondiam, mas nunca uma ferida de repulsa. Não, não naqueles tempos. Entrando pelo pórtico, o abraço da mãe, o sorriso compreensivo, empurrado adiante dos ombros, de meu pai.

Na nossa primeira noite, após o jantar, eu e Elle nada fizemos além de fumar, conversar e sentir falta de música. Se ela soubesse minha alma. Não por vergonha, mas pelo jogo que a trouxe aqui. Elucidar-me na raiz de um jardim que lhe agradava o passeio.


Dorminos abraçados e luzes de pesqueiros uniam estrelas e mar. Cortina com vento, algum lugar atrás disso e da pequena floresta, o lago. Tomei o resto do vinho que já pegara no sono, sobre o criado-mudo ao lado de Elle. No dia seguinte iríamos lá. Eu sei que ela exigiria.


Nós dois mergulados até a altura do peito, Elle alta mesmo descalça. Jejum do café.

Ela me beijou a boca.

Eu a tirei de mim. Fiquei de costas para seus lábios, para seus dedos.

Ela me abraçou, Elle.

- Então é apenas isso, querido ? Tais lembranças...

- Apenas é tudo isso.

Revoada de asas, melodia mais requintada, na atualidade.

Elle me abraçou.

Fechei os olhos.

Seu hálito na raiz de meus cabelos já começando a clarear.

- Seu bobo.

- Sim.

- Seu lindo.

- Me...me abrace mais.


Que todos os verões sejam com você, querida.

Que nenhuma embarcação te leve,

não desse momento,

nunca desse instante...


°

14 comentários:

Rosa Panerari disse...

Ótimos seu texto, rapaz!
muitíssimo bem escritos, gostosos mesmo de ler.

Abraços.

Anônimo disse...

Velho,

Pareceu uma imagem ao ler seu texto muito bem tramado e articulado. Vi um duende, um campo, uma floresta nele. Vi metafísica misturada com verve de um vulcão.
Disse pra Ricardo Wagner que em Julho vou pra Vila Madalena. Convidei ele e te convido. Paramos aí em Campinas e te pegamos e vamos lá dar umas risadas e tomar umas.
Abração.

Unknown disse...

Paulo é sempre uma delícia ler seus textos.Poeta.
Nossos verões, nossos invernos...passado que pulsa no nosso presente.
Lindo!
Bjo

Anônimo disse...

Ei, PC!
Leve o texto, dá pra ler com o olfato.

Duas coisas:
1. assenti, além de concordar, envolver a senti (eu a percebi). isso gostei muito.

2. Elle, além de nome feminino, pode ser lido como ele (masculino). Isso enriquece de possibilidades o texto e o torna mais parecido com vc.

Valeu!
Um abraço daqui de BH.
John

Paulo D'Auria disse...

Além do interessante jogo de palavras Elle-presente, eles-lembranças, gostei da inversão do papel da natureza.
Em textos românticos a natureza é uma alida dos sentimentos do escritos. Se está triste, chove; se está alegre, sol; etc.
Neste texto de natureza ambígua, é ambígua a natureza.

Grande abraço,

Paulo D'Auria
http://paulodauria.zip.net

Tout Seul disse...

Um prazer ler você.
Sempre ler e ver o que você sente. Elle antigo, de todas as formas imaginadado. Passado pulsante, texto ardido. Coisa cavada do fundo, bem no fundo, no olho da alma. Ver cada cena em movimento, jorros e sorrisos...Vale a pena reler voltar e sentir. Na pele, Elle (ela) lindos, em palavras, sentimentos, Livres de toda espera.

Poeta sacana. Que inventa até o cantar de anjos.

Te beijo de tanto ... Te ler
Chris - Pan

Anônimo disse...

Lindo... muito lindo!
Pude ver até o meu reflexo no lago.
Intenso ao ser suave, leve... como dissestes "algo de sonho".
bjo bjo
Dani

Hannah disse...

o afeto é mesmo uma assombração. é mesmo.

Anônimo disse...

a parte que eu mais gostei "in vino veritas"... AEuiehiauuiohAuii
outra coisa... Elle foi o melhor nome... vc é tipo um viking fracês com aspirações românticas... haeuiEhOEHIoAEUIhUI

:P

=*
(vc esperava o que? um comntário construtivo??? aff já tem muito aki)
AouiehieuioEuiEHaEHiH

Anônimo disse...

Que gostoso que foi te ler ...
adorei o jeito como vc coloca "Elle" ela...
entrei no lago por alguns instantes.

Mais uma vez...sensações, cheiros e gostos.

bjos
Paty VN

Grazzi Yatña disse...

Me senti uma Ofelia que se ama...

Izabel Xarru disse...

Esse texto penetra, sentido por sentido, segredo que mesmo dito claramente, não é dito.
Uma coisa tão dos sentidos que toma do leitor voltar-se para dentro, o texto é dentro, paisagem, avanço e medo.
Uma delícia mais que inteligência.

Thaty Marcondes disse...

Ah, baby, baby....Esse foi sentido e será refletido. Reflexo no espelho que vai e volta. Esse, como tantos, voltará.
Beijos

Anônimo disse...

Gostei mesmo, tive a sensação de um sonho, situado em qualquer idade, em qualquer cidade, um sonhos daqueles bons de serem sonhados.
Vinho, frio, dormir, sonhar assim, acordar feliz.