domingo, 14 de março de 2010
Movimentos Rápidos dos Olhos.
Nada que desse sinal. Na noite anterior fizemos o de sempre. Ela apenas se demorou mais a levantar, ou eu que muito cedo. Confundi tédio com angústia. Que seja, de uma forma ou de outra sempre algo acontece. Um detalhe. Peguei a câmera na mochila e a filmei no sono. Quando mexia os olhos de maneira rápida, era sonho. A saliva espessa tinha algo de homicídio.
Eu ainda não tinha a técnica. Deixei de perceber quando começou a se virar de um lado a outro na cama e fazer sonhos. Continuei filmando. E sem sinal, despertou já olhando para a lente. Não desliguei, ainda havia inocência, ou mesmo a preguiça. Esses critérios do tédio e da angústia.
- O que você está fazendo? - se cobrindo, os seios chupados horas antes, dando jeito súbito no cabelo desalinhado aos puxões.
Algumas respostas, alguns textos, algumas letras surgem de maneira espontânea, mas não, mas nunca, livres. Existe uma definição de seu futuro nessas falas que se impõem. Ocorre um pause que redefine. E ao se dar play novamente, tudo está mudado, ou simplesmente a virada do ato, o assumir do que sempre esteve ali. Em termos ideais, a reminiscência não tem porra alguma a ver com a rememoração.
O fato é que frase dita, virada de surpresa para ambos em frase já feita, levei arranhão no rosto, e as poucas peças de roupa, livros, o que deixei naqueles meses, atolados raivosamente na mochila. Continuei filmando. Ela me olhava com ódio enquanto me chamava o táxi. Teria sido atriz. É assim ao se acordar. Mas a frase apenas definiu a cena como aquele ainda nesse nunca mais.
Condensação: Excesso de sentido insuportável em poucas palavras.
Ela despertou e me viu filmando. Minhas costas na parede gelada, tonificante. Os poros sabem antes.
- O que você está fazendo? - se cobrindo, escondendo o mamilo que endureceu.
( Poderia ter sido outro rumo, se eu escolhesse as palavras ? Sim, e esse é o delicioso ridículo das situações em vigília. Mas o que me ocorreu na língua já em corda foi:)
- A única coisa que me enciuma é sua irremediável solidão.
º
O estatuto do ciúmes é a regência do incontrolável. No lugar onde a estratégia não funciona. Na curva da alma, na assinatura ancestral dentro do erótico. Os maiores gozos não proporcionamos a ninguém. Nem nos proporcionamos. Nada jorra mais que a pornografia autista.
O sono. Por incomparável excelência.
º
1) Deve-se sempre perguntar se troca o dia pela noite. Dependendo, uso as lentes normais ou noturnas. A anfetamina me coloca no ritmo da pessoa.
2) Não há motivo para escolher o sexo, a idade, a crença, o papo. O que antecede, o barzinho, a conversa cabeça, charmosa, as piadas sem graça, a sauna, o sanduíche para a criança que dorme na escada, a troca de olhares na boate, a pedra de crack para a adolescente que treme retorcida na pilastra, enfim: tudo isso se iguala. Estão atuando. Você também. Semblantes.
3) Nunca filme um casal. Mesmo dormindo, um sabe que o outro está lá.
4) Intercale as posições, as feições, os ângulos patéticos com cenas de beleza daquele corpo, a respiração, os pequenos gemidos, close nos cílios.
5) Não intervenha. Nem no corpo nem nas cobertas. Não mude a temperatura do quarto. Não lamba nem de leve o rabo. A tentação é grande. Existe o desejo, existe o sadismo. Controle-se.
6) Atenção para os Movimentos Rápidos dos Olhos. Filme-os. Principalmente os que você sabe que antecedem o despertar. É o que será lembrado quando você perguntar no café da manhã, com gentileza, com demonstração do real interesse, sorriso bondoso: "Você sonhou? Me conta?". Claro que sempre se perde grande parte. Porém é algo como, digamos, os "Extras".
7) A única coisa que jorra são as irremediáveis solidões.
º
Sento-me na poltrona da sala.
Disponho minhas "vítimas" pelos sofás. Algumas preferem ficar no chão. Outras dançam nuas, carnavais esquizóides. Duas ou três sobre os livros na estante. O senhor de boa aparência anda de um lado para o outro, sugando um Havana. Algemo os viciados.
Sento-me dentro de minha orelha:
- O que você ganha com isso?
- Tenho certeza que ele bate punheta nos vendo assim, desprotegidos.
- Calma. Não vejo mal algum. Mas bem que poderia avisar antes.
- Como assim não vê mal algum ? Isso chama invasão de privacidade !
- Não tem um filme, um filminho, com aquela gostosa loira, assim, bem assim com esse nome ?
- O fato é que se ao menos nos ficássemos sabendo, poderíamos denunciar esse cidadão.
- Ele deve colocar em algum site. Escrever em blog sobre isso. Todo pervertido quer compartilhar.
- O que mais me machuca é que eu estava mesmo pensando ter encontrado uma pessoa especial naquela noite. Chovia muito. Ele entrou. Pediu o mesmo drinque e me pagou outro. Sorriu. De alguma forma era sincero.
- Tem isso. Todo mundo quer algo que não conta. Nem sabe.
- Puta que o pariu. Vão defender o monstro agora ? Piraram ?
- E se ele nos mostrasse depois? Se revelasse ?
- Eu o expulsaria da minha casa. Eu o arranharia bem nessa cara de escárnio.
- Sim. Ele está rindo. Vejam. Ele está gargalhando.
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8) Existe uma dor em meio ao gosto bom do vício. Você nunca poderá filmar a si próprio. Pegará no sono sabendo que a câmera está lá. Isso interfere. Isso tira toda a graça. Isso lhe afasta de você mesmo.
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- A única coisa que seca é o remédio torto para a solidão...
- Falou comigo ? Não entendi. Repete ?
- Sim, falei. E claro que repito. Você é linda demais para estar com esses olhos assim tão úmidos. Vou pedir um drinque. Me acompanha ?
- Obrigada, aceito. Só não vou beber demais, mesmo que esteja pra isso. Ou acabo dormindo aqui mesmo no balcão.
- Relaxe. Não vou deixar isso acontecer.
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