Eu havia sido expulso da Universidade. Em uma aula, cansei. Foi isso. Cansei. Deu, porra. Você entra na sala, olha para os alunos, vem com a cabeça diretamente das intrigas do departamento, olha para as alunas que já comeu, as que te odeiam, as que ainda te amam, as que deram e receberam a troca boceta-boa nota e as paredes estão mais próximas, elas se grudam em você, o título da aula sem graça aparece na tela, você diz como sempre diz "o próximo", o slide muda, mas parece que não muda nunca, alguns dormem, mesmo você ainda está um pouco dormindo, mas não o bastante para estar descansado e seguir adiante. Um dos alunos da frente olha com admiração para você. E na camiseta dele, uma bolota amarela, com olhos e um sorriso, a frase "BE HAPPY" abaixo. Ele pode ter sido aquele que no mês passado pediu uma bolsa de mestrado. Ou a tese dele já está na sua sala. Intocada. Um cansaço assim talvez não comece de repente. Mas se faz. Tem seu momento. E logo o tema da aula se torna claro. A imbecilidade da vida acadêmica. Você cita nomes e vícios de outros docentes, informa cientificamente qual a aluna da sala tem o melhor boquete, enfim, esse tipo de coisa que liga cansaço com uma crescente sensação de liberdade. E "BE HAPPY" está anotando tudo.
Foi assim que guardei o apontador laser no bolso da calça, desci do tablado e quebrei seu nariz com um soco reto, usando os dois punhos. Antes pedi que ele se levantasse da cadeira. Aluno e mestre no mesmo nível, um professor não deve ter estrelismos pelo seu curriculum.
Pelas duas portas da sala, seguranças com rádios. O da esquerda chegou antes até mim. A Universidade da Vida ensina: se o cara é grande, chute o saco. Cansaço dá força. Se dobrou em vômito ao chão. Madeira.. O da direita não conseguiu atravessar a fileira de cadeiras até me alcançar. Tempo o bastante para chegar ao carro e nunca mais colocar os pés ali. O jejum fez cair bem os copos de pinga e o cigarro longamente tragado no boteco.
Durante três dias nenhum contato da universidade, até a chegada do telegrama. Convocação para um exame de sanidade mental e o aviso de uma sindicância interna. Deixei o telegrama sobre a escrivaninha, ao lado do apontador laser. As duas únicas coisas que ainda me ligavam à Universidade. Não me faltou fome para o café da manhã. Só não estava afim de ler o jornal. Corri direito para os classificados e achei "Duas asiáticas lindas que transam entre si e com você.". Foi uma tarde divertida. Enquanto uma cheirava pó, a outra fuçava no meu computador.
- Que dia você nesceu ? Que cidade, benzinhno ? Sabe a hora ?
Disse o que sabia e inventei o resto.
- É aquário com ascendente escorpião. Isso explica o teu jeito.
- O meu jeito está de pau duro. Vem.
- Explica até isso, seu maluco ! Aii.....
Paguei o dobro para que fizessem a faxina do apartamento. Nuas. Dispensaria a Rosilda por quinze dias. Excelente negócio. Rosilda iria perguntar demais sobre se eu estava de férias, se eu não estava bebendo muito, se era bom voltar a fumar. Decidi dispensar Rosilda para sempre.
As japas foram felizes elevador abaixo e eu me tranquei por dentro. Poderia pedir uma pizza brotinho. Poderia um monte de coisas. Bem parecidas entre si. Arrumar as malas ou me matar. Pensar em me inscrever na hidroginástica assim que fosse amanhã. Mas lá estavam o telegrama e o laser. Um em cada mão inchada, latejante.
A decisão não foi difícil. Amassei o telegrama e o joguei pela mesma janela. Pela mesma janela em que segundos depois me apoiei no parapeito descamando ferrugem na camiseta. Liguei o laser e comecei a mirá-lo nas janelas do prédio em frente. Apenas nas janelas com luzes apagadas. Eu queria iluminar detalhes. Eu queria que pensassem que fosse uma arma. Mas peguei apenas objetos. Um trecho de geladeira. Estante com poucos livros. Uma televisão de plasma. E assim por diante. Porém, mesmo com a proximidade entre os edifícios, ainda via tudo de longe. E se alguém estivesse escondido atrás do sofá, se cagando de medo, facção criminosa, dívida de jogo ?
Nada de hidroginástica.
No dia seguinte comprei um binóculo.
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No início não era vício ainda. Nunca é. Distração apenas. Começa assim.
O ponto vermelho iluminava um diâmetro extremamente pequeno do que eu visava. O binóculo ampliava. A graça estava na exploração. Na dedução partindo de um detalhe. Metodologia científica, afinal. Esperava a noite andando pela cidade. Vendendo livros técnicos e comprando romances, poesia, esse tipo de coisa dos sem tarefa. O pessoal do prédio da frente chegava entre cinco e sete horas da noite. Nesse horário eu tinha que estar à janela. Abriam o portão, alguns poucos cumprimentavam o porteiro, e logo em seguida eu esperava que janela iria se abrir, que luz iria se acender, de que apartamento começaria a vir a música. Eu já sabia quem era o morador. Mas ainda não estava na hora de observá-lo. Só quando a noite caísse. Só com meu ponto laser auxiliado pelo binóculo. A degustação é melhor que a devoração.
Decorava um, no máximo dois moradores a cada entardecer. Os que seriam meus alvos pela noite. Temia apenas que logo soubesse de todos. E que me cansasse deles. E que mesmo sendo os detalhes pontuais potencialmente infinitos, não mais me entusiasmasse.
O fato é que mesmo com o requinte, não me afastava muito do pervertido comum. Captei algumas trepadas. O foco percorria os corpos. Os poros. Os pêlos. Refletia nos suores. Tal como qualquer tarado vulgar, batia minha punheta, o apontador laser mordido entre os dentes salivados, uma mão no binóculo, outra no cacete. Sim, obviamente, por algumas vezes casais e solitários viam o laser. Corriam fechar a janela, acender a luz, xingar no escuro. Desenvolvi a habilidade de uma vez percebido, desligar o foco de imediato.
º
Já era necessidade. Acordava tarde no dia seguinte e escrevia tudo que fora notado no apartamento explorado. Palavras. Frases. Logo alguns sentimentos. De asco, tesão, crítica. Arriscando até uns versinhos satíricos. Quanto tempo gasto e quantas idéias não nascem daí, em observar uma boceta lindamente peluda, ponto por ponto, adormecida, arruivada pelo vermelho sangue da mira ?
E foi naquela tarde que veio a idéia de criar o blog com a fotografia do prédio e as atualizações diárias, juntar os textos esparsos. Isso me empolgou. Me tirou do ritmo do vício. Compartilhar uma Arte. Deixei anoitecer sem escolher nenhuma personagem na chegada da rotininha de merda. E só fui perceber isso da maneira mais interessante possível: ali estava, sobre meus dedos que digitavam as histórias da cabeça para o blog, espancando o teclado, nesses meus dedos já não inchados, um foco de laser. Parei com as duas mãos espalmadas sobre as teclas.
Quem quer que fosse, sabia fazer e tinha bom humor: passou com o foco sobre cada uma das minhas falanges, um ponto só, de dez segundos. Deixando por último o dedo do meio da mão direita. E aí traçou, sem sair do limite, vários riscos de idas e vindas.
Abaixei a tela do notebook e fui até a janela, pegando minhas armas.
Esperava com isso que o foco do outro lado apagasse.
Não.
Rodeou meus mamilos.
Desenhou um colar em meu pescoço.
A pessoa não queria se esconder.
E eu deveria jogar da mesma forma.
Lá vinha o foco, do oitavo andar, apartamento da extremidade esquerda.
Em total escuridão fora o laser.
Era uma mão feminina. Uma bonita mão feminina.
Segui o mesmo roteiro: eram lindos peitos de bicos duros. Me fiz epopéia na exploração deles.
Ela andou pela sala e estava nua. Ela e a sala.
Também me fiz nu.
Para que eu pudesse ver melhor, foi generosa: enfiou seu laser dentro da xoxota depilada, deitada em um solitário sofá. Coxas estradas longas, paisagem.
Tenho certeza que nunca vi nada mais lindo. Não me excitei no pau. Me excitei no sublime.
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Não sei até que horas nos exploramos. Nos comunicamos.
Fizemos desenhos com movimentos rápidos, um na parede do outro.
Deu para ouvir ela rindo de nossas brincadeiras.
Também me permiti rir alto sem ecoar na lua ausente.
Que fosse uma noite eterna.
Não tínhamos pressa.
Foi apenas o surgimento súbito da careca solar que nos assustou.
O susto é interpretado como uma rápida tomada de decisão ou fuga.
As motos já entregavam revistas e jornais; o caminhão do leite.
Mas, lá embaixo, o asfalto ainda estava livre, perto do que estaria em alguns minutos.
Eu que primeiro apontei o foco para a rua. Bem no meio.
Ela desceu com o seu também.
E ambos os desligamos ao mesmo tempo. Entendidos em decisão.
º
Eu não tinha mais roupa limpa ou passada.
E isso não importava em nada.
Barba, cabelo, bafo.
Olheiras.
O estômago doendo de dias.
Fechei a janela, com isso informando que eu estava descendo.
º
Um em cada calçada.
Um sorrindo para o outro.
Um de jeans, chinelo e camiseta branca rasgada na manga.
Outra com uma capa de chuva sem que houvesse chuva. Descalça. Pés que eu já sabia de cor acho que até em átomos.
Apontei a padaria da esquina.
Ela sorriu.
Andei apressado, peguei uma mesa perto à janela.
Sentei. Quando ela entrou, me levantei.
Um longo silêncio.
Apenas um sorrindo para o outro.
Com tamanha intensidade que afastou o garçom macilento.
Era uma conversa que não poderia começar de onde deveria começar.
["Quando você teve a idéia de me imitar no laser ? Iria usar só em mim ou nos outros apartamentos também ?"]
Enfim, não.
Abandonei meu laser sobre a mesa e segurei sua mão.
Ela relaxou os dedos e seu apontador rolou, caindo no chão. Não se deu ao trabalho de pegar.
Nos levantamos: recebi sua cabeça em meu ombro.
E saímos dali.
Nem um pouco cansados.
Nem um pouco.
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