quinta-feira, 14 de maio de 2009

Malas molhadas.


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O que me manteve longe por tantos dias? Ou mais, se nem ao menos é o mesmo aeroporto que deixei. Ou antes ainda, o que me fez pegar a mala e convulsivo, enfiar de todo modo, sapatos verticais, sair da moldura, chamar o táxi ?
Recordo que você não estava, recordo que sempre adiávamos a troca das roupas de cama, entre bocejos e vulgaridades ditas como se aguardam as ratazanas sazonais. Lembro, quem sabe, tenha trazido vinho para o jantar anterior ao da minha fuga, quando você me comunicou que havia trocado a marca dos anticoncepcionais e que portanto, a bem da prudência e do horror, deveria cuidados ao esporrar.
Em algum momento o telefone tocara e eu deveria dizer se estava satisfeito com um serviço de impostos, metas, shoppings, algo assim. E também o interfone, a moça tinha uma voz, pois não me lembro e sim do interfone,( voz demasiadamente parecida com a sua), esse mesmo interfone que na minha ausência - vejo agora - mandou tirar, mantendo a mancha sombra na parede. E a moça queria um levantamento do bairro. Queria, sem incomodar, que em "minutinhos o senhor poderia responder umas perguntinhas, bem inhas, inhazinhas ?".
-Só existe a maldição.
Foi isso que respondi e pensei; apenas e exclusivamente a maldição.
E claro, a morte do Clodovil, uma gripe nova e seu anticoncepcional detalhadamente discutido com a ginecologista. E provavelmemte sobre meu saudosismo ao seu analista, da época em que queimávamos colheres, facas, orgãos contrabandeados pela simples função ( simples como um jegue bêbado e bandeirante) da alegria do amor.
- Existe apenas a maldição e os ratos que voltam sempre no verão.
Exaustivamente acordar é voltar. Sem nem ao menos ter tomado providências, assegurando as jactâncias gargalhentas de ser, ao menos, você tinha se tornado assim. Sem que tivêssemos percebido, você havia se separado de mim e casado comigo novamente, mas o ato foi o de casar com um eu que fosse alheio desse meu que ainda estimava, apesar dos anos, da linearidade dos calendários sei-cho-no-ie e das vernissages baforentas.
Acho que fiz as maldições em malas no dia em que me tomei com ciúmes de um eu bem menos eu que a mim mesmo, portanto, duplamente morto. De tal forma que estava aberta toda uma chance de nos divertirmos como antes ( do que ?), por exemplo, pensei, mas não ousei ( por vergonha de você e desse meu Outro que sempre comia de boca fechada e uma respeitabilidade de surfista profissional) em um duplo enterro no quintal, veja bem hoje, veja bem, até sorriso se esboça ao canto: eu assassinaria o Outro, você, passional, me mataria e assim, como não rir e até mesmo rasgar página a página, sentados nos telhados tumulares, as obras completas de Nelson Rodrigues e aquela peça de corno, hum, "Otário" de Shakespeare. Piada infame, claro, mas quando que a gente deixou de rir de um trocadilho, sem precisar perdoar, por estarmos entusiasmados ( esse presente, presença, dos baixos deuses) pela força, pela aliança, pela promessa, tanto mais sólida promessa por nunca ter sido pronunciada ?
Mas que veio esse Outro e até mesmo o corpo dele foi dia a dia se distanciando da aparência do meu. Pequenos detalhes, a curvatura das orelhas, a seguir, a pelificação da sobrancelha. E ele parecia te divertir muito com obviedades, em um tom de voz que também paulatinamente foi se distanciando do meu. A cada nova noite vocês assopravam velhinhas em bolinhos aniversariantes de casamento, beijavam-se delicadamente e com cobertores sobre as coxas contavam sobre a sabedoria feliz adquirida com a passagem do tempo, tomando chá e comendo amantegados.
Do meu canto, enquanto comparavam a literatura de Virginia Woolf com a de Marcel Proust, segundo dengos suporíferos impressionistas, gritava eu:
- Maldição ! Não se esqueça da Maldição, porra !
Gritos de uma coragem não sei donde, quem sabe sazonal de veraneio, mas mal me dirigiam o olhar e logo o Outro comentava:
- Esse aí bem ficaria enquadrado na parede.
- Sim, pois sim, querido. Divertido isso. Como um interfone sem propósitos e mais que isso, chances. E como andam os projetos para o novo aeroporto ?
- De vento em popa ! Os investidores internacionais estão interessadíssimos e o contrato os agrada muitíssimo e ao crescimento do país.
- Me alegra saber !
- Mais que isso ! Que tal um fim de semana no litoral ?! Só nós dois ? E a pílula anticoncepcional ?
- Perfeito ! Tanto a comemorar !
- MALDIÇÃO !!!
- Vai dormir, vai, parede. Baixe a cortina sobre o que estagnou porém ainda sangra.
- Tira o fone do encaixe e não me fale difícil. Teremos a praia logo mais na madruga, u-hú, hang loose.
º
E agora volto.
A casa vazia tem ar de alívio. Mas também estou vazio. A mala, a carrego oca e a roupa do corpo já nem sei pelo cheiro os dias. Sem memória. Possivelmente sem desejo, como disse algum bruxo. Acendo o cigarro, sento e espero.
Você vai me contar em detalhes tudo que vivi.
Nem que seja na mira da arma que lhe aguarda na cintura.
º