quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Antiquário ao Amanhecer.



"BABY
BABY
BABY
SPEND
YOUR
TIME
ON ME..."
( Duffy )


Ela dançava com o cigarro entre os dedos, o copo derretendo sobre o criado-mudo, os meus fios e os do abajour descapados. Olhos fechados, descalça, jeans lycra, sorria com partes da música que lhe eram piadas ou mesmo pequenos gozos internos: sedução, esse crime eu conheço e é o tipo de encrenca em que sou inafiançável como confesso cúmplice.
Meus livros se espalhavam pela sala em montes desorganizados, que é a única maneira útil de organizar livros. E era com essas pilhas que ela dançava, como corpos involáteis, estáticos, mas que carregavam coisas mais ou menos belas ou úteis dentro deles. Agora mais. Ela dançava comigo e para mim, volátil. Rebolando de pernas abertas, ia descendo joelhos serpenteando o ar vindo do ventilador preguiçoso. E subia lambendo as páginas compressas, algumas tantas já amereladas, e eu esperava um traço de humanidade que me redimisse: que ela espirrasse com a poeira acumulada. Mas nada.
E eu? Eu era uma poltrona, a almofada mais afundada, a marca de um corpo descapado, o suor do copo como risco de uma faísca que eu sabia não poderia vir. Não para estragar esse momento em que até mesmo a cidade inteira, pela luz azul-salmão do fim da madrugada na janela, parecia acolhedora. Um movimento errado meu e tudo se perderia. Mesmo quem estivesse acordando de um sonho bom, quilômetros dalí, quem estivesse passando café para o marido bacana no banho, a criança e seu paninho com chupeta amarrada...um erro meu e toda felicidade dessa gente poderia passar para o outro lado, ao menos dentro de mim. Um erro. E eu tenho o costume de ser todo errado. O limite entre o sublime e o ridículo pode ser um risco invisível no disco. A faísca anti-lírica.
Dos livros ela foi para diante do espelho( permanecendo de olhos fechados), acariciando rococós e barrocos, a antiga máquina de escrever nas unhas de um vermelho escuro decidido, como que calculado para que eu ficasse cada vez mais me agarrando a uma espécie de religiosidade porosa ( o suor do copo escorrendo em gotas insidiosas, labaredas líquidas invasoras, quase uma covardia contra a ausência de fita isolante nos sonhos que acontecem).
E assim ela foi indo, dando vida ao inanimado, quântico ou não, eu podia ver o estado deplorável das moléculas, a eminência de uma auto-combustão. Mas não, havia técnica naqueles pés descalços, perfeitos, o objetivo era deixar a realidade arfante, ronronante.
Então, com três círculos perfeitos e uma flexão de si, estava ajoelhada entre minhas pernas, as mãos em minhas coxas, os olhos finalmente abertos. Na janela o sol já era íris de verão alaranjada e eu tomei o que havia restado no copo, enxuguei-o na camiseta e banquei aquele olhar.
- Que cara ! Você está vivo, Mr. Zumbi ?
- Ou o contrário.
- Entendo. Agora, sabe, quero dormir um pouco. Posso usar sua cama?
- Você conhece o caminho desde...
- Psiu. Mais tarde me leva pra um antiquário lindo que eu conheço?! Leva ? É perfeito! Diz que vamos ?!
- Sim, é tudo que quero.
- Te adoro !
Rápido beijo na boca que continou em extensão nos passos saltitantes em direção ao quarto bagunçado. Desorganizado. E vivo. Desde...psiu.
Peguei umas moedas de ouro sobre o balcão e desci pra comprar pão francês.
º

domingo, 16 de novembro de 2008

CONTROL.

"Dir-se-ia que suas asas esbranquiçadas , atadas por fortes presilhas, tem nervos de aço, de tal forma fendem o ar com facilidade. Seu corpo começa por um busto de tigre e termina por uma longa cauda de serpente. Não estou habituado a ver tais coisas".
( "Cantos de Maldoror", LAUTRÉAMONT)
º



Maravilhas acontecem em um quarto com as asas da janela semi-abertas. Caduquez precoce, tudo de bom é bastante pouco.
Mas cada segundo vivido deve ser deixado passar, mesmo que na imobilidade de acender um cigarro atrás do outro, sabendo ser usura de tempo, que não existe muito mais o que fazer, a cerveja gelada.
As garotas andam maledicentes mudas humoradas, as que ainda não estão em cadeiras-de-rodas motorizadas pela alta técnica de seus namorados com tração nos quatro membros.
- Sabe, não é bem assim, acho que você sempre exagera.
- As asas da janela, tenho que abrir um pouco, o sol está se enfiando atrás de uma nuvem bem sinistra.
- E a nossa viagem ?!
- Durante um ano eu vivi andando de ônibus no mesmo ritmo e em determinada curva longa, eu de janelinha sem asas, apenas o cheiro enjoativo dos beiconzitos anominais das crianças vomitivas, eu olhava para bem alto, nos ângulos superiores do vidro e via o céu, e lá eu me via em uma viagem com alguém que valesse as penas e atritos, mas existia aquele cheiro a vida em seus segundos e minutos de que eu abdico, beiconzitos oleosos ( no sul chamam sabiamente de GRAXA), as mães conversando com o celular, a criança vomitando nos pés de trabalhadores olhos fechados sonhando com as prostitutas oriundas do décimno terceiro relativo ao tempo de férias vezes os dias contados em fração de horas extras e computadores epilépticos. Por isso eu olhava para a janela e via que atravessava nuvens de fumaça e reencontrava antigos segundos, minutos, areias, praias, correr atrás da bola em um vôlei improvisado de camarões assados, mar azul, bundas deliciosas, almas perfumadas sem bacon, bem antes de vestibular e do enfisema e do Alzheimer da minha mãe. Ela era muito parecida com a Malu Mader, sabe, mas ainda sem clínicas de desintoxicação e urinol.
- Sabe que agora o check-in pode ser feito em terminais eletrônicos nos aeroportos. Uma amiga minha me falou de um lugar delicioso logo depois da fronteira com Goiás.
- Forneira? Eu me atrapalhei todo com contas bancárias, cpf, relógios calcificados e cartões de fidelidade e pontuação atmosférica e universitária, em carreira acadêmica ou essas escadas rolantes de sexo oral nas instâncias vídeos amadores do "secretária do chefe". Escadas rolantes e Escalas De Qualidade de Vida, esse tipo de piada.
- Ainda é muito recente para eu me envolver com alguém, eu ainda amo ele outro. OU eu ainda sou muito tímida para me esfregar na dianteira. OU não é estrategicamente no tempo de agir, eclesiastes. Por isso falo em férias e em uma maneira subterfúgia de sermos felizes. Óperas ao amanhecer.
-BEICONZITOS.
- Façamos um trato até o ano que vem, penso no assunto se você não voltar a fazer aquelas coisas abomináveis.
- Eu apenas me atrapalhei pela arte da solidão maravilhosa, marte de peles, em acertar a fração ofuscante e luminosa das asas da janela com o perfume escolhido por mim: celular desligado, suor da nudez, inapetência do choro se divertindo na trava da garganta...
- Não é isso que quero. Vou procurar uma cadeira de rodas, nem que seja de segunda-mão, pernas, braços, sexo, alma, credo.
- Corra atrás de seus sonhos. É de menino que se torce o pepino geneticamente alterado na fumaça. Uma idéia na cabeça, uma câmera na mão. Na saúde e na doença.
- Eu vou embora.
- Nunca esteve aqui, ou seria OUTRA.
- Você precisa de alguns exames de sangue, urina e espermograma. Cem gramas de queijo do Exército da Salvação na sopa.
- Preciso acertar algumas coisas com as asas do sol e das tempestades vindouras, com licença.
- Nâo deixe seu tempo passar apenas assim...
- Cansativa. Boring, Boring...me traz uma cerveja e vá até um caixa eletrônico salvar sua vida, garota.
- Sabia que estão espalhando coisas e beiconzitos contra você ? Até mesmo telefones celulares com suco gástrico !
- Deixe-me estar. Sabia que estou espalhando asas no vento, no fogo, na terra , na água e nos meus dentes ?
- Incorrigível !
E a GAROTA foi mal-humorada comprar uma camiseta com slogan e senha empregatícia, contrato higiênico e covarde cinza borrado.
Um pouco mais de sol, assim, de gelo, seco isso, as chuvas dos vulcões entram na minha corrente sanguínea, molhe DURO.
Eterna curva
pontual
para o alto daqui:
Maravilhas descadeadas.
º