quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

O Porre dos Malacos.


1)
- Por que você é tão anti-social ?
- A sociedade que é anti-social. Eu até que me dou bastante bem com quem sobra.
- Por mim, vai. Por mim. Levanta daí, coloca uma roupa. O cara está morrendo.
- Ah...uma coisa aqui no meu peito...acho que dessa vez eu vou. Fui. Adious.
- Pára. Ele é meu primo mais velho. O único cara que me entendeu quando a gente estava em crise.
- Eu não gostaria de me emocionar agora. O dr. Eduardo falou pra eu me reservar. Posso conseguir um atestado contra primos com câncer no fígado que entendem crises conjugais alheias. Segunda-feira te entrego.
- No fígado mais quinze metástases cerebrais.
- Sei. Ele foi...aquele...o único a te ententer?
- Foi. Ele mesmo.
- Vamos.
- Você muda mesmo rápido de opinião. Nunca sei.
- Nunca saiba. Melhor pra você.
°
2)
Uma casa de luxo. Você abre a porta e praticamente já está dentro da piscina. Só não cai na água porque o bar está a esquerda. Ela vai me apresentabdo para as pessoas, que vão me beijando, me apertando a mão, me dando nojo. Pular na piscina de roupa e tudo. O filho tatuado e sarado conta como vai ser bacana casar com alguém chamada Poli na Inglaterra. Descubro que Poli é ou um cachorrinho toy que late pra mim desde a hora que eu cheguei ou uma mulherzinha magra, perfeita, boas tetas, bunda adequada e um ar de elegância que beira a idiotia. Começo a mostrar a língua primeiro pro cachorro depois pra moça sentada no banquinho, coluna ereta. Nessa o toy pira e eu descubro na bronca que ele chama Malaruche. Poli é a inglesinha mignon perfeita e com crises epilépticas controlada a duras penas pelos maiores neuro-cirurgiões de Oxford. Tenho certeza que embaixo da cabeleira loira há uma dúzia de cicatrizes. Poli, olhe minha língua, Poli, vamos foder na piscina, Poli, olhe a velocidade com que eu consigo mexer isso aqui, Poli, vai tomar no meio do teu cu a serviço da majestade.
A família é grande. Não é a minha família. Dá a impressão de não ser a família de ninguém, mas uma cena que desgrudou de algum filme, outro carinha tatuado, pega o primeiro e se trancam no banheiro, uma velha que bate no peito e repete aos brados "Vou fazer 90 anos em abril", e um grupo assustador de senhoras uns bons saltos além da meia-idade. Todas com a mesma cor de pele. Montam a armação em meio-círculo. Olham pra mim. Penso em correr, Malaruche late selvagem e antes que eu possa chutá-lo da barra da minha calça, lá estão as senhoras, em uma estratégia de ataque pra Sun Tsu nenhum botar defeito. Estou cercado.
- Ah, você bebe alguma coisa, querido ?
- Sim...sim...uísque....
- Ah, estamos todas tão transtornadas.
- Ah, a doença do Dingo.
- Dingo ?
- Ah, meu marido - não sei qual delas deu a resposta. Ou todas elas.
- Sei. Grande Dingo. Obrigado. Sem gelo mesmo.
- Ah, sirva-se, deixei a garrafa ali...
Saco bem onde é o "ali". E acolá, os copos.
- Ah, mas ele está recebendo três vezes por semana a visita de uma terapeuta floral, que aplica cristais sobre os chakras. Você sabe, a gente pode curar a nossa vida. Soube que você adora ler. Que é escritor. Já leu Louise Hay ? A Gasparetto sempre diz que a gente precisa deslocar a energia da morte para onde está a vida...
- Onde está a vida?
- Ah ! Você é ótimo.
- Ah, ele é ótimo !
- Ah, você surfa ? Todos nossos filhos surfam. Só na surfa a Cris, tadinha, ela tem diabetes, bulimia. Mas está noiva. Deve se casar em Estocolmo. Para uma moça com tantos problemas até que Estocolmo já é alguma coisa, né querido ?
- Sem dúvida. Já vejo o slogan "Eu como em Estocolmo: Patrocínio Insulinas de Porco".
- Ah !
- Ah !
- Ah, deve ser humor, né ? Dizem que os escritores...
- Cadê o Dingo? Gostaria de vê-lo.
- Ah, bem, ah, ele fica em um dos quartos lá em cima. A gente não quer misturar o clima festivo com toda essa tristeza. Mas a cada hora uma de nós sobe lá e faz um carinho, lê um pedaço de um bom livro de Salmos Dos Anjos Cabalísticos, limpa o dreno dele e levamos verduras, muitas verduras.
- É. Eu realmente gostaria de vê-lo.
- Ah, um dos meninos leva você. Meninos ? Meninos ? Poli...i don't see...
- O quarto lá em cima. Não se preocupem. Poli pode rachar. Eu me viro. Não se preocupem em levar nada pro Dingo. O Maraluche também precisa de atenção. Né, verme ?
- Au au au au au au !
- Ah, Maraluche, pare lindo !
- Au au au au au au au au au au au !
A garrafa de uísque. Os copos. Questão de dar um salto e distrair...
- Maraluche, seu bostinha, pegue isso.
E lá se foi o coisinha atrás do cigarro. As mamães atrás. Minha oportunidade.
- Ah, ah !
- Ah, é um biscoito, que gentil !
- Ah, é um cigarro ! Larga Maraluche, não engole !
- Ah, engoliu !
- Ah, ele está ficando com os pêlos azuis...
E eu já estava na escada. E armado.
°
3)
Tranquei a porta por dentro.
O quarto fedia merda, bile, verduras da semana passada.
Abri a janela.
Lá embaixo, uma correria danada e depois silêncio. Pobre Maraluche. Veterinários existem também pra isso. Cães fumantes.
Enfim, Dingo:
Deitado na cama.Roxos por todo corpo, pernas inchadas, um cano transparente que saia de sua barriga enorme e babava um líquido negro.
- Dingo, abre o olho. Sei que você não está dormindo.
Ainda de olho fechado:
- O que você quer ? Não respeita um doente terminal ?
- Quero matar essa garrafa de uísque com você. É do bom. Um dos seus, é claro.
Na hora ficou esperto. Agitou. Babou um pouco no canto dos lábios.
Puxei a poltrona e trouxe pra perto da cama. Me servi e depois coloquei uma boa dose pra ele.
- Deixa eu te ajudar. Mais uns travesseiros. Você babando me enoja, Dingo.
- Isso, assim, assim está bom...
- Tim Tim.
- Tim Tim. Quem é você ?
- O marido da sobrinha que você meteu ano passado, Dingo. Ela estava se separando, você aconselhou. Uma semana antes do carnaval. Ela voltou pra casa. Uma quantia de grana alta apareceu na nossa conta conjunta. Eu saquei tudo, a trepada e a grana, antes que ela pudesse se tocar.
- Eu juro...eu nunca iria...
- Dingo. Pare. Vou chamar a sua terapeuta dos cristais. Relaxe. Somos do mesmo tipo. Só que você vai morrer em algumas horas e eu vou continuar por aí.
-...você é o tal escritor que não presta, que faz a coitadinha da....
- Dingo, Dingo. Você está me irritando. Só vim tomar uns uísques com você. Juro que esse papo de saladas está te trazendo o inferno.
-...
- Né não ?
- Pior que está, cara. Vai me serve outra dose.
- Boa.
- Quer dizer que você ficou com a grana. Que grande filho da puta !
- Somos, meu amigo, somos. Mas apliquei bem o seu dinheiro. Coleções completas. Flaubert. Balzac. E discos. Que discos. Bem diferente dos seus moleques que gastam em pó, pranchas e gostosinhas que nem sabem que você existe. E nem querem saber.
- Porra. Pior que é verdade. Me acende um cigarro desses.
- Pega o meu. Acendo um pra mim.
- Ah....que delícia !
- Traga bem. Aproveita. Mas o maço tá cheio. Tem mais de onde veio esse.
- Ótimo. O que é um peido pra quem já está todo cagado?
- Gostei dessa. Posso usar em um dos meus livros ?
- Claro. Se no inferno tiver biblioteca tenho certeza que os seus textos passados, presentes e futuros estarão por lá. Pelo que ela me contou.
- Ela não sabe me ler direito. Se você ainda tivesse tempo eu me recomendaria pra sua ociosidade. Mas imagino que morrer dá um trabalhão.
- Nem te conto. Mas chega sua hora. Mais uma dose, por favor...
- Toma. Caprichada. Pois é, Dingo, mas quando chegar minha hora, espero não estar cercado de gente tão escrota quanto você. Que merda de circo é esse ?
- Como você acha que eu fiquei rico, moleque?
- Uma das donas.
- Bingo. Você continua pobre porque casou com mulher bonita. E bem gostosa. Boas lembranças dela.
- Você prefere que eu peça pra ela subir te bater uma punhetinha ou quer ficar aqui bebendo. Se bem que não sei se ela também não foi acompanhar aquele cachorrinho viado até o pronto-socorro.
- O toy ? Pronto-socorro ?
- Dei um desses cigarros pra ele comer. São fortes, né ?
- Gosto de você, garoto.
- E eu gosto de você, Dingo. Vira aí. Nunca comi um cu com icterícia.
- Que foda. Só rindo. Acho que é mais ou menos assim o jeitão que gente como a gente morre, não foge muito disso, rapaz. Filhos estúpidos, coleção de esposas, amantes, sócio do Iate Clube, uma pilantragem aqui outra ali e quando viu, pumba, já era.
- Deixa disso, Dingo. Louise Ray sempre diz, "você pode curar a sua vida".
- Caralho, seu merdinha. Se eu pudesse me levantar daqui te enchia de porrada.
- Como não pode a gente continua bebendo, fumando e eu esperando você morrer.
- Estou sentimental. Virei um velho bostalhão sentimental. Você tem idade pra ser meu filho. sem sarro agora, imagine que dupla. Hein ?
- Eu teria medo de nós dois juntos, Dingo. Iria ser foda.
- Pobres mulheres.
- Pobre humanidade, Dingo...
- Boa. Serve outra. Tá dando um sono bom.
°
4)
- O plantonista achou um cigarro dentro da porra do cachorro. Eu pedi pra ver. Era da sua marca. Do seu fedor.
- Amor, o vício é mesmo uma coisa triste.
- Sei.
- Relaxa, gata. Apenas continue dirigindo, a brisa está uma delícia.
- Pra quem não queria ir, até que você está com uma cara ótima.
- Gostei do Dingo.
- Sério ?
- Muito sério.
Eu deveria estar mesmo com uma cara ótima. O bolso de trás da calça melhor ainda. O cheque de Rodrigo Alcantâra de Menezes. O Dingo. A letra tremida um pouco, mas eu ajudara com um apoio. Assinou me chamando de "filho" e chorando. Eu agradeço a quantidade de zeros, Dingo. Só espero não chorar no final. E se chorar também ? Alguém tem alguma coisa com isso ? Pois então, fodam-se.
°