(Foto: Paulo Castro )
Saudades mentirinha de quando o barco( musgo na alma ? Só rindo...) pendia pra algum lado. Agora existe uma calmaria de miséria( os marinheiros pescam fantasias sob a forma de pedaços humanos plastificados), sobrando ao plural capitão pular no mar com a boca cheia de areia, espermartozóides e óvulos, nadar sem mastigar, sem deglutir, cantando uma canção apenas na mente. Mentirinha.
De forma que preciso aqui no navio de doadores e fornecedoras. Não precisam correr, já afundou, já chegamos no pé, agora é uma questão de querer ou não que a barcaça crie raízes e que com isso, constituamos em um futuro impreciso, algo que já se sabe falho: uma sociedade, alguma comunidade, férias com máquina fotográfica, horário para acordar, em que o breakbeast substitui o despertador de trabalho, convenhamos afinal: Proponho uma anti-Arca de Noé.
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A fantasia é entendida pelo matema:
$ <> a
Onde $ é o sujeito barrado e "a" é o objeto perdido.
Sujeito barrado de que? Essa é fácil: pelo próprio princípio próprio que permite chamar alguém de "sujeito" e que entendamos do que se trata. Sem entender porra nenhuma, na verdade. Barrado pela linguagem. Que se permite o fato de um papo com café na padaria poder acontecer, permite também que a gente se saiba como limitado, nunca o sonho. Ou você acha que sonha apenas quando está dormindo, quando deixa de ser, por que ?
E que objeto perdido, cara pálida ?
Um dia você teve fome e deu que chorou. Pela primeira vez. E sua mãe te faz uma surpresona. Aparece com aquele tetão magnético. A coisa é tão boa que você pensa: Toda vez que eu chorar, vai aparecer algo assim, tão bom ?
E chora de novo.
Mas o que volta é o tetão. Só que você não quer ele. Você quer outra coisa: a surpresa, o gozo dessa novidade. Mas o mundo só te oferece tetão. Ou coisas que sejam substitutas de tetão( clássicos dos Rolling Stones, chocolate, coisas do tipo ). Mas nada mais que tenha tamanho impacto de surpresa satisfatória. O Objeto "a" é essa coisa que você não esperava e veio, e que depois que veio, nunca mais nada virá causar o mesmo. Lacan não disse, mas disso tudo, como podemos deduzir, decorre que após a sucção inicial, só nos resta o tédio e uns balões a cada aniversário. E presente de dia das crianças até sair da casa dos pais. Que pais ?
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Tem um pedaço de fogo na minha garganta. Bem cortado, dimensionado, medido. Ele não queima como poderia queimar, mas é tudo que tenho. É também o que me cala, ouvindo as pessoas, sem nada mais a acrescentar.
Tem um pedaço de pessoas dentro da minha cabeça.
Tenho medo de levar o fogo para cima e me tornar um assassino. Tenho pavor de trazer as pessoas para baixo e acabar engolindo o pouco de chama que me foi aventado.
Por isso que não sei o que dizer, por isso que também não te beijo.
Você entende ?
É minha, de toda gente, natureza de perpétuo ovo de dragão.
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O sujeito barrado, o sujeito que fala, escreve, pensa com imagens e palavras, está em constante relação com o tal objeto perdido. Essa relação que se chama fantasia. Mas olha só: a relação sugere o que ? Que uma coisa nunca vá se tornar outra, ou a equação some. A fantasia some. E se a fantasia não some é porque, novamente Stones, não existe satisfação.
Nunca haverá mais. Só houve uma vez. Melhor seria se nunca tivesse ocorrido, então a palavra "esperança" não existiria, simples assim. Grande sacanagem aquela primeira mamada. Enorme trairagem da natureza. Mas se não tívessemos mamado, estaríamos mortos. Pois é. Aí que começo a rir até meus bagos virarem vaga-lumes: A vida viva é uma tremenda escrotidão. No dia em que inventarem a retirada desse câncer chamado fantasia, sou o zerinho na pesquisa.
Mas sobra outra questão: se há um relacionamento entre $ e "a", isso ocorre pois é possível transitar de $ até "a", o que podemos entender, mas também...de "a" até $.
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Coceira em todo lugar eu já vi. Menos essa até agora, como me dar um nome depois de agora, sempre ?
Há duas semanas a parede do meu quarto começou a coçar.
Acordei com sede e não era líquido que matava, acordei suado e estava frio em todo canto, acordei ao lado de uma mulher que nunca conheci e ela disse "que foi, meu grande amor?".
Comi a sede, queimei o suor e a pele, à mulher eu disse que a queria para todo sempre véu e amém, mas apenas se ela se submetesse a alguns meus caprichos particulares. Fugiu pela janela do apartamento, sem olhar para a frente.
E não era nada disso.
Vi a parede e ela coçava em mim.
Branca, o concreto aparecendo pela rachadura em forma de mapa-mundi por descobrir, era naquele rasgo que eu coçava-me outro. Prurido que não era dentro, que não era fora.
Era no espaço entre eu e a parede. Branca e fixa, pois é.
Minha avó falava antes de perder os dentes: "Comer e coçar é só começar".
Prurido coisa boa: quanto mais eu enfiava as unhas na parede, mais a coisa ficava êxtase por fração de mínimo, de um bom ótimo além tanto tanto que vai pra lá da palavra e vive em um abismo entre meu umbigo e o primeiro átomo que deve existir logo após a parede, o primeiro pedaço de ar, a primeira instância da amputação do espaço que reconheço como meu, como eu, imagino. Que mundo explosão sem esforço.
Sim, eu tentei. Saí correndo, tomei o elevador, peguei a rua, saltos na corrida. Mas. Mas sei lá o quão longe, o bastante para que, fora da minha vista, dos meus dedos, da minha língua lambida nos inocentes cupins, paradoxo em cada olho chorando, eu sentisse a parede do apartamento me enlouquecendo de coceira lá nela e apenas nela em mim. Vomitei nos estrados das ruas e carros acamados de tanta movimentação, e minha última janta tinha o gosto que teria a palavra que falta aos amores todos antes do começo. Voltei deliciosamente, ou seja: em um misto de angústia e certeza de satisfação.
Cavei o buracio na parede, no tempo em que estava livre de atender campainha, telefone, e-mails demandosos. Me encaxei nele, não sou pequeno, o tamanho fiz exato, sem o saber, no entanto. Nem aquele átomo exultante de sobra e falta. Não tenho mais como despencar para dentro ou tropeçar para fora. Estou preso. A bomba amarrada às minhas coxas vai explodir em três minutos. Com os dentes gemidos ares, trago os ponteiros do relógio anexado sempre ao três minutos. Toda vez que faltam apenas três segundos.
"A vida, saiba, precisa de um sentido para se viver". Como diria minha mãe, enterrando os dentes da avó na quente terra ao sol, lá do quintal confortável que não mais existe em nenhuma memória, nem jamais existiu.
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Baudrillard vai fornecer a melhor interpretação dessa rota de fuga, do objeto "a" até o sujeito barrado. Não sei se Baudrillard sabe disso, mas eu sei. Quando ele diz que os objetos se vingam, finalmente de nós. Apenas acho que ele deixa algo atemporal como sendo contemporâneo. A vingança do objeto sempre existiu. Vejamos a lei da ação-reação, mas sem ingenuidade. Batemos em um objeto e ele devolve a pancada. Mas o que nos fez escolher aquele objeto para nosso soco ? Apenas a proximidade ? Não sabemos a razão.
Não saber é que algo escapa da nossa capacidade de significar.
O que escapa ? O que não pode ser dito, o que é a materialidade da linguagem. Lacan chama também o objeto "a" de "materialidade da linguagem", ou letra.
Isso mesmo: achamos que escolhemos, mas quem nos escolhe, de uma forma misteriosa, ancestral, visceral na coisa, é o objeto.
Quando o objeto nos ataca ( $ <-- a ), somos nós os objetos: somos o absurdo. O vácuo sem fim de um objeto besta atacando e sendo atacado por outros objetos ridículos para todo sempre, geração a geração.
A análise calma da equação fantasiosa nos prova, assim: Não existe essa ficção chamada sujeito. Não existe eu.
Não existe você.
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Ops...o barco está afundando em direção ao céu. Alguém me passe apenas o filtro molhado de um cigarro ?
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"Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas
lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes".
(Herberto Helder)
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