domingo, 28 de fevereiro de 2010

Anjo Futebol Clube.


Na primeira vez eu ainda nem tinha porra. Mas antes disso tinha o jogo, sempre tem. Um futebol de rua com molecada gritando ora "gol", e "parou, vem o carro!". E vinha o carro e passava por nós em corredor de shorts enfileirados, sem saber que havia outra regra. A dor.
E antes do jogo vem sempre a- ei, hum- "célula mínima da sociedade".
Eram dois irmãos, filhos-donos de um empório natureba que ficava bem ali diante,
da rua com campo em spray branco beijo no asfalto.
Os pais deles meditavam em tantra na casinha do fundo, quintal de hortinha-caseira-cada-um-se-liga-na-Natureza. Nunca quando no horário de jogarmos futebol. 
Bem assim: a bola batia em você e viesse no meio da cara, viesse na boca do estômago, nada de expressar dor. Nenhuma careta. Nenhum ai que roxo fosse ademais. 
O irmão mais jovem, anjo que assim era, sempre caia a chão gemendo,  mesmo que a bola apenas relasse em seu fio de cabelo loirinho. O mais menino de nós. 
E antes de toda graça, a regra: demonstrar dor era dar o rabo cinco minutos para cada jogador de ambos times. Cada vez que mostrasse dor. Ou fraqueza.  ! Lá vem o carro ! Ai, essa doeu !
Dar a bundinha no templo de incensos e Krishinas, atravessar a horta de piroquinha dura.
Aqueles jogos moldaram um time de homens que aprenderam a não sofrer.
Reza uma lenda compartilhada. Eu era magro.
Hoje, pois sempre tem, ainda encontro no aqui e por ali uns dos times.
Nos reconhecemos pelo rosto duro, o aperto de mão de quem trabalha, sustenta  família e se for do grau, lê Isaac Babel. Umas cervejas sempre, cigarros, charutos, esteja com câncer ou no horário da carteira assinada.
Antes.
O mais menino ria quando chorava. 
Ele não queria apenas sofrer de bolada na fuça; vinha em divididas de bola que sabia se ralar todo na queda sem camisa, pele sugando cada costela da vontade sangue e ansiedade antecipada.
Antes disso, Caim e Abel, mas não vou nessa lítera: falo de molecada suja no asfalto e gargalhadas depois do cuspe.
Quem propôs as regras foi o irmão mais velho. 
- Trepo meu moleque toda noite. Ele é bom no que faz. 
O Campeão dos Campeões. Ai. Doeu. Cinco.Dez. Quinze pra cada pivete. Tinha mesmo muito de anjo. 
Eu que não, redondinha na orelha, (segura firme cara, olha o carro), "Olha o carro!".
- Tudo bem, Magrão ? Doeu, hein ?
- Nada. Tô inteiro, passou o monza, não dou moleza. Simbora, a bola.
E pais que nunca estavam ali.
Mas quer saber? Mesmo que estivessem.
Tinham que vender incensos.
E o templo com os deuses de tantos braços
velas
colchonetes vermelhos,
virava o lugar de foder o rabinho do menino irmão, todo sorrisos e lascas de pele arranhadas.
- Magrão, deixo você ficar mais cinco minutinhos...vai...enfia.
- Moleque, temos uma ordem aqui, deu meu tempo, vem o Negro e depois o Pança-Boi.
- Com você é mais bom...
Hare Rama Rama Hare.
Osho me olhando da parede, aquela cara de escroto.
- Então chupa. Dois minutos.
- Adoro, Magrão.
E ele chupava. Menino loiro, faltavam asas.
Eu nem tinha ainda porra.
E era dos mais velhos. 
Mas tremia.
Porém
As coxas, os olhos,
 tremiam.
Lindo menino loiro deus nessa hora, via nos joelhos da altura, rodavam orientes.
Hoje ainda, na cerveja, mesmo com câncer ou atraso pro banco:
- Lembra que a gente e o menino...
- Lembro. Como está a família, Magrão ?
Lá antes, quando entrávamos na casa
e esperávamos na cozinha com Nescau, açúcar mascavo, a nossa vez,
e não importavam mais os carros que passavam. As velas eram silenciosas.
- Quero ser só sua namorada, Magrão. Acaba com esse jogo chato dos outros em mim.
- A vida não é como a gente quer, pivete.
- Não ?
- Não. - e saindo do templo- Vem Negro, tua vez.
- Um beijo antes, Magrão, rapidinho.
- Corre, Negro ! Não quer foder ?!
Ainda hoje:
- Nunca mais vi os irmãos, Pança-Boi.
- Não me chama assim.
- Nunca mais vi os irmãos, Dr. Alexandre.
- Tá reclamando, Magrão ? Doeu ? Vai chorar ? 
- Que porra? Me desconhece ?
- Mais uma gelada aqui, chefia !
- A mais gelada !  
- Essa cidade tá virando inferno, cara.
- Tanto carro na rua que não mais.
-Não mais, Magrão. Disse tudo. 
º