sábado, 30 de janeiro de 2010

O Descanso nos Poros.

Eu havia sido expulso da Universidade. Em uma aula, cansei. Foi isso. Cansei. Deu, porra. Você entra na sala, olha para os alunos, vem com a cabeça diretamente das intrigas do departamento, olha para as alunas que já comeu, as que te odeiam, as que ainda te amam, as que deram e receberam a troca boceta-boa nota e as paredes estão mais próximas, elas se grudam em você, o título da aula sem graça aparece na tela, você diz como sempre diz "o próximo", o slide muda, mas parece que não muda nunca, alguns dormem, mesmo você ainda está um pouco dormindo, mas não o bastante para estar descansado e seguir adiante. Um dos alunos da frente olha com admiração para você. E na camiseta dele, uma bolota amarela, com olhos e um sorriso, a frase "BE HAPPY" abaixo. Ele pode ter sido aquele que no mês passado pediu uma bolsa de mestrado. Ou a tese dele já está na sua sala. Intocada. Um cansaço assim talvez não comece de repente. Mas se faz. Tem seu momento. E logo o tema da aula se torna claro. A imbecilidade da vida acadêmica. Você cita nomes e vícios de outros docentes, informa cientificamente qual a aluna da sala tem o melhor boquete, enfim, esse tipo de coisa que liga cansaço com uma crescente sensação de liberdade. E "BE HAPPY" está anotando tudo.
Foi assim que guardei o apontador laser no bolso da calça, desci do tablado e quebrei seu nariz com um soco reto, usando os dois punhos. Antes pedi que ele se levantasse da cadeira. Aluno e mestre no mesmo nível, um professor não deve ter estrelismos pelo seu curriculum.
Pelas duas portas da sala, seguranças com rádios. O da esquerda chegou antes até mim. A Universidade da Vida ensina: se o cara é grande, chute o saco. Cansaço dá força. Se dobrou em vômito ao chão. Madeira.. O da direita não conseguiu atravessar a fileira de cadeiras até me alcançar. Tempo o bastante para chegar ao carro e nunca mais colocar os pés ali. O jejum fez cair bem os copos de pinga e o cigarro longamente tragado no boteco.
Durante três dias nenhum contato da universidade, até a chegada do telegrama. Convocação para um exame de sanidade mental e o aviso de uma sindicância interna. Deixei o telegrama sobre a escrivaninha, ao lado do apontador laser. As duas únicas coisas que ainda me ligavam à Universidade. Não me faltou fome para o café da manhã. Só não estava afim de ler o jornal. Corri direito para os classificados e achei "Duas asiáticas lindas que transam entre si e com você.". Foi uma tarde divertida. Enquanto uma cheirava pó, a outra fuçava no meu computador.
- Que dia você nesceu ? Que cidade, benzinhno ? Sabe a hora ? 
Disse o que sabia e inventei o resto. 
- É aquário com ascendente escorpião. Isso explica o teu jeito. 
- O meu jeito está de pau duro. Vem.
- Explica até isso, seu maluco ! Aii.....
Paguei o dobro para que fizessem a faxina do apartamento. Nuas. Dispensaria a Rosilda por quinze dias. Excelente negócio. Rosilda iria perguntar demais sobre se eu estava de férias, se eu não estava bebendo muito, se era bom voltar a fumar. Decidi dispensar Rosilda para sempre. 
As japas foram felizes elevador abaixo e eu me tranquei por dentro. Poderia pedir uma pizza brotinho. Poderia um monte de coisas. Bem parecidas entre si. Arrumar as malas ou me matar. Pensar em me inscrever na hidroginástica assim que fosse amanhã. Mas lá estavam o telegrama e o laser. Um em cada mão inchada, latejante. 
A decisão não foi difícil. Amassei o telegrama e o joguei pela mesma janela. Pela mesma janela em que segundos depois me apoiei no parapeito descamando ferrugem na camiseta. Liguei o laser e comecei a mirá-lo nas janelas do prédio em frente. Apenas nas janelas com luzes apagadas. Eu queria iluminar detalhes. Eu queria que pensassem que fosse uma arma. Mas peguei apenas objetos. Um trecho de geladeira. Estante com poucos livros. Uma televisão de plasma. E assim por diante. Porém, mesmo com a proximidade entre os edifícios, ainda via tudo de longe. E se alguém estivesse escondido atrás do sofá, se cagando de medo, facção criminosa, dívida de jogo ? 
Nada de hidroginástica. 
No dia seguinte comprei um binóculo.
º
No início não era vício ainda. Nunca é. Distração apenas. Começa assim. 
O ponto vermelho iluminava um diâmetro extremamente pequeno do que eu visava. O binóculo ampliava. A graça estava na exploração. Na dedução partindo de um detalhe. Metodologia científica, afinal. Esperava a noite andando pela cidade. Vendendo livros técnicos e comprando romances, poesia, esse tipo de coisa dos sem tarefa. O pessoal do prédio da frente chegava entre cinco e sete horas da noite. Nesse horário eu tinha que estar à janela. Abriam o portão, alguns poucos cumprimentavam o porteiro, e logo em seguida eu esperava que janela iria se abrir, que luz iria se acender, de que apartamento começaria a vir a música. Eu já sabia quem era o morador. Mas ainda não estava na hora de observá-lo. Só quando a noite caísse. Só com meu ponto laser auxiliado pelo binóculo. A degustação é melhor que a devoração.
Decorava um, no máximo dois moradores a cada entardecer. Os que seriam meus alvos pela noite. Temia apenas que logo soubesse de todos. E que me cansasse deles. E que mesmo sendo os detalhes pontuais potencialmente infinitos, não mais me entusiasmasse. 
O fato é que mesmo com o requinte, não me afastava muito do pervertido comum. Captei algumas trepadas. O foco percorria os corpos. Os poros. Os pêlos. Refletia nos suores. Tal como qualquer tarado vulgar, batia minha punheta, o apontador laser mordido entre os dentes salivados, uma mão no binóculo, outra no cacete. Sim, obviamente, por algumas vezes casais e solitários viam o laser. Corriam fechar a janela, acender a luz, xingar no escuro. Desenvolvi a habilidade de uma vez percebido, desligar o foco de imediato. 
º
Já era necessidade. Acordava tarde no dia seguinte e escrevia tudo que fora notado no apartamento explorado. Palavras. Frases. Logo alguns sentimentos. De asco, tesão, crítica. Arriscando até uns versinhos satíricos. Quanto tempo gasto e quantas idéias não nascem daí, em observar uma boceta lindamente peluda, ponto por ponto, adormecida, arruivada pelo vermelho sangue da mira ? 
E foi naquela tarde que veio a idéia de criar o blog com a fotografia do prédio e as atualizações diárias, juntar os textos esparsos. Isso me empolgou. Me tirou do ritmo do vício. Compartilhar uma Arte. Deixei anoitecer sem escolher nenhuma personagem na chegada da rotininha de merda. E só fui perceber isso da maneira mais interessante possível: ali estava, sobre meus dedos que digitavam as histórias da cabeça para o blog, espancando o teclado, nesses meus dedos já não inchados, um foco de laser. Parei com as duas mãos espalmadas sobre as teclas. 
Quem quer que fosse, sabia fazer e tinha bom humor: passou com o foco sobre cada uma das minhas falanges, um ponto só, de dez segundos. Deixando por último o dedo do meio da mão direita. E aí traçou, sem sair do limite, vários riscos de idas e vindas. 
Abaixei a tela do notebook e fui até a janela, pegando minhas armas. 
Esperava com isso que o foco do outro lado apagasse.
Não.
Rodeou meus mamilos. 
Desenhou um colar em meu pescoço.
A pessoa não queria se esconder.
E eu deveria jogar da mesma forma.
Lá vinha o foco, do oitavo andar, apartamento da extremidade esquerda.
Em total escuridão fora o laser. 
Era uma mão feminina. Uma bonita mão feminina.
Segui o mesmo roteiro: eram lindos peitos de bicos duros. Me fiz epopéia na exploração deles.
Ela andou pela sala e estava nua. Ela e a sala.
Também me fiz nu.
Para que eu pudesse ver melhor, foi generosa: enfiou seu laser dentro da xoxota depilada, deitada em um solitário sofá. Coxas estradas longas, paisagem. 
Tenho certeza que nunca vi nada mais lindo. Não me excitei no pau. Me excitei no sublime.
º
Não sei até que horas nos exploramos. Nos comunicamos.
Fizemos desenhos com movimentos rápidos, um na parede do outro.
Deu para ouvir ela rindo de nossas brincadeiras.
Também me permiti rir alto sem ecoar na lua ausente.
Que fosse uma noite eterna.
Não tínhamos pressa.
Foi apenas o surgimento súbito da careca solar que nos assustou. 
O susto é interpretado como uma rápida tomada de decisão ou fuga.
As motos já entregavam revistas e jornais; o caminhão do leite.
Mas, lá embaixo, o asfalto ainda estava livre, perto do que estaria em alguns minutos.
Eu que primeiro apontei o foco para a rua. Bem no meio.
Ela desceu com o seu também.
E ambos os desligamos ao mesmo tempo. Entendidos em decisão.
º
Eu não tinha mais roupa limpa ou passada.
E isso não importava em nada.
Barba, cabelo, bafo.
Olheiras.
O estômago doendo de dias.
Fechei a janela, com isso informando que eu estava descendo.
º
Um em cada calçada.
Um sorrindo para o outro.
Um de jeans, chinelo e camiseta branca rasgada na manga.
Outra com uma capa de chuva sem que houvesse chuva. Descalça. Pés que eu já sabia de cor acho que até em átomos.
Apontei a padaria da esquina.
Ela sorriu.
Andei apressado, peguei uma mesa perto à janela.
Sentei. Quando ela entrou, me levantei.
Um longo silêncio.
Apenas um sorrindo para o outro.
Com tamanha intensidade que afastou o garçom macilento.
Era uma conversa que não poderia começar de onde deveria começar.
["Quando você teve a idéia de me imitar no laser ? Iria usar só em mim ou nos outros apartamentos também ?"]
 Enfim, não.
Abandonei meu laser sobre a mesa e segurei sua mão.
Ela relaxou os dedos e seu apontador rolou, caindo no chão. Não se deu ao trabalho de pegar.
Nos levantamos: recebi sua cabeça em meu ombro.
E saímos dali.
Nem um pouco cansados.
Nem um pouco.
º


      
   



terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Ensaios de Comunicação Erótica.




- Mas você não gozou.
( a fazer essa questão mais para si, sente-se patético e já sentia antes, mas era como um crime premeditado na saliva, auto carnificina que reduz o tamanho do pau de um cara lá onde fica a alma do pau, o herói lambuzado, suado, pendente como se tomasse um trago merecido na taberna após a batalha, se transforma em um apêndice de banha exibido na vidraçaria da padaria, lá pelas cinco horas da tarde, a gordurinha suspeita que vai ser usada no lanche do cliente antipático).
- Mas foi tesão demais.
- Se foi tesão você poderia ter gozado. Demais.
( arqueólogos encontram nesse momento a coroa de espinhos crística. a sede é uma metrópole em crescimento vertiginoso num crânio e pede vinagre, os dentes ficam cheios demais, prédios de escritórios com executivos brincando com bexigas coloridas, mongos arranha céus).
- Não é assim que funciona.
(ei, clint eastwood !!! )
- Eu sei, querida. Bobinha. Eu sei mesmo que esporrei loucamente nos teus peitos. Está aqui pra satisfazer seu gato. Isso aí.
-...
- Vou fumar um cigarro, de boa.
- Mas também não é assim.
- Claro que é, gata.
- Me abraça forte.
E eles se abraçam. E ficam ainda mais suados. Em silêncio. E dormem. Amanhã ela gozará.
º
O médico disse que o stress o deixou com a imunidade baixa. Para tomar todo, extremo cuidado com os germes. Eles sofrem mutação. Cada vez mais perigosos. Ela gosta de coisas que envolvam uma boa quantidade de germes. No rabo, por exemplo, como tirar as fezes germinadas debaixo das unhas ? As corta no curto até quase o sangue. Álcool gel ao lado da cama. Mas e enfiar a língua ? O banheiro fica longe do quarto. Correr escovar os dentes ? Mas se lambe uma bunda no início. Ele a ama. Lamberá. Mas com um comprimido antibiótico sublingual.
- E mesmo ela te fazendo sexo oral. A boca dela contêm GERMES ! Só com camisinha.
- Entendo....entendo, doutor.
Ela gosta do gosto do pau. Nada de morango, chocolate, menta. Nem bourbon.
- Goza na minha boca. Eu não engulo. Fico sentindo o gosto. Espalho na cara. Delícia.
Um antibiótico sublingual pra ela também. Mas e pra tomar ?
- Alô, cara...
- Porra, bicho, essa hora, que merda !
- Problemão. Dá idéia, é amigo ou tá de onda ?
- Conta. Fala. Vou cobrar, viado.
- Isso. Isso. Isso. Não ri. É que isso. E isso, meu. Sacou ?
- Ok, vamos lá. Eu conheço sua mulher...
- Como assim, maluco ? Conhece minha mulher ?!
- É minha prima, seu noiado. De segundo grau, mas prima.
- Pior ! Nunca engoli isso. Puta papo....sei lá, cheio de germe !!!
- Nem ela engole, pelo que você falou. Toda loirinha, toda babadinha de porra, hum....
- Me espera, tô indo aí. Não foge. Hoje te arrebento, gajo.
- Relax. E ouve aí.....
Ele deitado. Deitado é bom para stress. Ela dizendo que não com o dedinho indicador, unhas vermelhas estrelas cadentes.
- Quero te chupar em pé. Olhando pra você. Levanta daí. Quero sentir tua coxa tremer.
- Amor...
- Upa já. Levanta, gostoso.
- Vamos pirar nessa trepada. Arrumei um Ectasy louco, doido, pirado. Europeu. Eu tomo, você toma. Deixa derreter debaixo da língua. Daí chupa.
- Uhú ! Adorei. Só um homem muito tesão pra ter essa idéia !
- Sério ?
- Eu dou prum cara desses pelo tempo da minha vida. Me passa esse troço pra cá.
º
 - Você me come e já vai pro computador.
- Já te disse, princesa. Escrever um poema de amor. Nosso amor. Me empolga !
- Que nunca me mostra.
- Nosso amor sempre te mostro.
- Quero ler um desses poemas ! Agora !
- Você nunca gostou de poesia, amore...
- Passei a gostar. Um namorado poeta. Puxa, que honra. Vai, mostra.
- Que clima, saco, assim não. Foi embora a inspiração. Sumiu. Culpa sua.
- Sabe por que nunca gostei de poetas ?
- Hein ?
- Isso da inspiração. "Ai, cadê ? Onde foi ? Um vento outonal levou embora, Oh !". Puta coisa de broxa. Broxa e Bicha. Como chama isso ? Aliteração ? Broxa e Bicha. Taí teu poema.
º
Arqueiro ON.
Clarice ON.
Arqueiro diz: Ela já foi dormir...
Clarice diz: Certeza que não tem problema ?
Arqueiro: Tá até roncando.
Clarice diz: Ai, que saudades do que a gente faz....
Arqueiro diz: Eu também, nossa.....fez as fotos ?
Clarice diz: Fiz. Só suas. Só nossas.
Arqueiro diz: Já estou daquele jeito.
Clarice diz: Quando vamos poder sentir juntos o que apenas fotografamos ?
Arqueiro diz: Eu quero. Mas eu preciso fazer com que ela não encane com meu sumiço. E isso cansa.
Clarice diz: Sei. Mas não se esqueça que espero. E muito. Preciso.
Arqueiro diz: Eu também. Mas vai, agora mostra as fotos...
Clarice: ENVIANDO FOTOS....
Arqueiro diz: Noooooooosssssssaaaaaaaaaaa......Aquela genuína gravura de Dürer ! Perfeita ! E no ângulo que pedi ! Os detalhes, o chiaro/oscuro !
Clarice diz: hihihihihihhiihhiihihihihih....como você me pediu. O guarda do museu achou estranho, mas
Arqueiro diz: Desligar ! Vou ter que desligar. Acho que fiz barulho. Ela acordou !
Clarice diz: Santo, o que ela quer ?
Arqueiro diz: O que mais ? " Tesudo, vem me foder, vem me deixar louca, come meu cu !"
Clarice diz: Descontrolada. Vai. Não quero trazer problemas.
Arqueiro diz: Tenho que ir. Desculpe a vulgaridade. Um abraço. Obrigado. Fui !
Arqueiro PARECE ESTAR OFFLINE
Clarice OCUPADO. Mensagem: "Lendo Balzac".
º
- O teu último conto foi o mais previsível de todos que já li. Essa coisinha de conversa por MSN, ai, ai, que moderno.
- E esse teu quadro na parede? Essa galeria vazia ? Um Modigliani cagado e cuspido, não vai agradar nem anoréticas.
- O que você tem contra mim ?
- Pior que nada. Eu escrevo, você pinta. Tente escrever.
- Você tente pintar.
- Certas coisas só eu posso te oferecer.
- Pense. Estamos nessa há tempos. E certas coisas só eu posso te dar.
- Eu quero agora.
- Na banheiro ?
- Algum lugar mais arriscado ?
- Deixa ver. No mezanino.
- Adoro.
º
Beth, bem mais de quarenta anos. Camila, menos de vinte anos. E eu, lutando contra o calendário. Campari, suco de abacaxi com hortelã e canudinho, cerveja, respectivamente.
- Não sou um homem bonito, mas algumas mulheres dizem que tenho algo, algumas mulheres percebem no olhar, na maneira de andar, a gesticulação, que o cara é bom, isso foi o que ouvi. Sei lá se é verdade. É verdade, Camila ( Camila linda, doçura de pele clara, levemente vesga, calça jeans com a barra em fiapos, boca de sino, um totalmente pretensioso chinelo havaiana, esse piercing no narizinho arrebitado, pedra reluz o fim de tarde) ?
- Camila ?
- Que foi Bethinha ?
- Você não saca também essa coisa nele ? Está até no cheiro. Respira fundo. Não é perfume. É de Homem.
- Sempre respiro fundo. Yoga. Sabe que tem respiração para poupar e gastar energia ?
- Sei, Camila. Sei um monte de coisas. Se um dia eu pudesse te ensinar...
- Além de tudo, culto.
- Não, Beth ! O culto é um chato. O que eu sei é pra fazer minha vida e a de quem amo mais feliz. Claro, se eu for amado. Ou as páginas dos livros se tornam lugares onde depositar tristemente a solidão. Você se sente só, Camila ?
- Ah, tem a galera a facul. A gente sai, se diverte, sempre tem alguma coisa pintando.
- Camila, de mulher pra mulher. "Alguma coisa pintando" não satisfaz a gente. Precisamos de mais. Ou ficamos deslizando na superfície do gelo até ser muito tarde. Descongela com o tempo, dia a dia, e afundamos de hora para outra. Não é nada agradável.
- Odeio o frio. Meu negócio é calor. Areia, mar, ondas. Você é meio pálido, cara.
- Estou tentando sair de um momento difícil, Camila. Mas se você me chamar na praia eu vou.
- Tadinho. Precisa de colo, né ? - e dá-lhe Beth acender mais um de incontáveis cigarros.
- Receber colo é dar colo.
- Lindo ! Lindo, viu Camila ?
- Dani ! - mesmo gritando, Camila tinhas asas de fadinha no lugar de cordas vocais - Dani !! Aqui, olha, nessa mesa....tô indo aí......Beth, olha que gato....um tesão.....olha o tamanho desse homem. Que boca perfeita ! Vejo vocês amanhã. Beijo, Beijo.
- Camila, tem cara de imbecil....volta aqui....
- Deixa, Beth.
- Que porra de menina burra.
- Eu que ainda estou meio fora de batalha.
- Que nada. Olha a auto estima !
-...
- Querido, quer vir comigo? Na minha casa? Os meninos viajaram.
- Não. Obrigado.
- Não é pena. É tesão. Sempre tive. E afinal hoje é hoje.
- Mesmo assim.
- Eu entendo. Triste. Mas entendo. Bom, o que nos resta ? Feliz Aniversário pra você.
- Pra você também, querida. Feliz Aniversário. Muitos anos de vida e tal. Me dá um cigarro ?
º
  

domingo, 3 de janeiro de 2010

O Cuidador de Avencas.


O macarrão está no prato desde ontem. O molho de sobras, foi o que ela disse, "olha só, se não ficou rosê !". A cama está como o macarrão e a vida em geral, só que mais tempo do que ontem, quando cedi à insistência de lhe mostrar como eu cuidava das avencas sem que elas apodrecessem. Isso porque eu nunca tive uma coleção de selos. Não sei quando comentei sobre a arte de cuidar de avencas, mas erámos dois desconhecidos em um café e ela pediu o jornal do dia, caderno de cultura, possivelmente com uma foto de avencas, algo assim. Ou na parede. Nome de uma salada no cardápio. Ao menos não me recordo de fazer constantemente a barba, lavar os cabelos, escolher uma camisa bem passada. O que certamente não define um estilo, mas a questão da insistência com que aquela mulher ( e continuo a tratando assim, mesmo depois de ontem) pediu meu telefone. Não havia música ambiente no café, apenas deveria ser verão e o barulho nada discreto que as louças fazem na cozinha, sob a água, sob o mau humor, fora do horário de pico. Aquela mulher. Falta de escolha, talvez. O ambiente vazio, eu cheguei depois e pedi um copo d'água, pode ser torneira de preferência, moça. Mas ela era uma mulher que para quem se importa, haveria de ser atraente. Naquele momento, importava-me sair da cama, desde o ontem daquela época, outras, desfeita, suada, algo ao ponto de gritar pela janela. Avencas devem receber pouco vento e ângulos específicos de luz, não suportam gritos e o inútil, como um berro que não desencadeie as vias de fato.
Passei o telefone naquela tarde. E não garanti que estivesse ainda em funcionamento. Ela sorriu fazendo duas figas com as mãos, despropositada como um macarrão cujo molho é feito de sobras na geladeira. Ela tinha uma boa bolsa executiva, um relógio que combinava com os sapatos baixos, elegantes, no couro e em algum cuidado na preparação. A bolsa combinava com o café curto, mas prolongado propositalmente. Ela também tinha avencas, mas morriam. Não sabia o motivo. Mas eu soube desde o início que ela não se importava com suas avencas. Era como se fosse o prenúncio da chuva em um ponto de ônibus, papo. Queria saber de mim. "Quero saber de você...". Eu tomava um copo de água torneira e olhava para o tampo da mesa. Insistiu.
- Eu não sou interessante.
"Isso sou eu quem decido".
Você aprende a cuidar de avencas percebendo o que elas decidem de melhor para elas mesmas. Nunca se impõe nada para uma avenca. A quantidade de água deve ser testada a cada dia, o que misturar à terra não é diferente. Foram anos até que eu descobrisse o pó de ossos de galinha.
- Muito bem. Eu estou desempregado, durmo quase o tempo todo, fora nos momentos de cuidar das minhas plantas, não avancei na vida como a idade que tenho faria esperar, tomo alguns remédios que me garantem a vida, não estou certo dela, não sei que dia da semana é hoje, que dia do mês, bastante covarde para as vias de fato, não sei inglês, o que na minha vida eu chamei um dia de aventuras, hoje chamo de mecanismos de desastre futuro.
"Impressionante".
- O que ?
"Tudo isso. Essa sinceridade. Esse...esse...não sei como chamar."
- Não tem nome mesmo. As palavras servem à utilidade.
"Brilhante."
- E penso demais. E no momento eu penso que só existem duas possibilidades para você. É a porra de uma antropóloga, socióloga, psicóloga ou por algum motivo está querendo trepar comigo. No primeiro caso, você é o tipo de pessoa que merece morrer. No segundo caso, quem me impressiona é você. Se eu for foder a boceta de uma égua na encosta, tenho que sedá-la antes. Um fato é: em nada te importam as avencas.
"Mas...sim, eu gostaria de...."
- De ?
- "Você já disse...."
- Fala, puta.
-...
- Puta, escrota, sem vergonha, boqueteira barata...
"Eu queria trepar com você."
- Piedade ?
"Tesão".
- E isso nasceu de onde, como, você tem tudo para quem você quiser, sabe, OS CARAS, então, eu não consegui ser UM CARA. E não os desprezo. Isso teria seu charme, ultrapassado, mas ainda charme, marginal. Mas os invejo com todas as minhas forças, que não são muitas. Inclusive meu pau não sobe com facilidade, aliás, não raras vezes gozo rápido demais.
"Posso te ligar quando ?"
- Quando você quiser. Se o telefone estiver funcionando, eu atendo. Caso esteja acordado ou desocupado.
"Me dá um beijo, antes que eu vá?"
- Sente o drama do hálito.
"Vou preparar uma jantinha para nós. Eu levo umas coisas especiais..."
- Sim, você vai cozinhar. Mas com o que eu tiver em casa.
º
"Eu diria que esse molho ficou rosê !"
- Coma. Quero ver você comer.
"Me acompanha..."
- Coma sem fechar a boca. Mastigue alto. Nâo use o guardanapo nem a mão.
"Você come depois ?"
- Prometo, meu amor.
"Eu sou seu amor ?"
- Não. Pensava nas minhas avencas.
"Elas são lindas. Merecem viver para sempre".
- Taí. Concordo. Agora come. Sem pudor.
Se lambuzava. Quando mandei que enfiasse a cara no prato, não exitou. Fio escorrendo pela narina esquerda. Quem sou eu para julgar. Mas posso rir.
- Satisfeita ?
"Sim, mas e você não..."
- Se levanta. Sobe a saia, abaixe a calcinha e apoie as mãos no sofá. Arrebite essa bunda. Diga pra que você veio aqui. Motivo.
"Pra te dar".
- Vamos ver isso, perua. Não se confunda com o número de dedos no lugar errado. E vou exigir apenas uma vez. Enfie quatro dedos no cu. E o polegar na boceta. Um erro, um choramingo, uma lembrança de ex-namorado que esse sim, era gentil, você sai daqui aos socos.
Sem reação alguma, fora ser exata: 4+1.
- Mexa essa mão. Rápida.
O cu começou a sangrar em algumas estocadas.
- Continue. Não pare. Estarei de olho, mesmo que isso não seja excitante. Está na hora de dar o pó de galinhas às avencas. Elas são pontuais. Elas sabem o que querem.
O barulho de umidade mucosa, o som continuava vindo da sala. Ela obedecia.
Sempre guardei o pó sob a pia da cozinha. Bem na frente. Em primeiro plano.
Não estava mais lá. Estava, mas caído, jorrado na lajota, lateral. Não no lugar de sempre.
O que estava era o pote plástico com a tampa mal atarrachada. Nunca usei aquela merda. Não desentupo coisas.
Balancei: mais de dois terços faltavam lá dentro, o treco antes intocado.
As vias de fato.
"Esse molho ficou rosê". "Me acompanha". "Pra te dar."
Avencas não se importam com a fumaça de cigarro. Puxei o banquinho e acendi um. Depois mais outros. Som de vômito na sala. Golfadas cada vez maiores. Crescendo. Depois, diminuindo e um som bolhoso de respiração. Cada vez mais rara. E, por fim, o peso caindo sobre o chão cru.
Apaguei a ponta na parede, enfiei o pote plástico para o fundo, limpei o pó de galinha, ficando apenas com a quantidade necessária para a noite.
- Desculpem, minhas lindas, hoje papai atrasou um pouco. Não se ofendam. Vocês merecem viver para sempre.
º